Poster do filme
Todos
conhecem Woody Allen como o grande cineasta vencedor de quatro Oscars (um de
direção e três de roteiro) cujos filmes tais como Manhattan (1979); Broadway
Danny Rose (1984); e Poderosa
Afrodite (1995); apenas para citar alguns, caíram no gosto e imaginário
públicos. Acima de tudo, ele é conhecido como comediante, com piadas ao mesmo
tempo mordazes, sutis e inteligentes com temas que vão do sexo até a filosofia,
passando pela política, metafísica, religião, esportes e literatura.
Entretanto,
há muitas pessoas que se surpreendem com o que ficou conhecido como o “lado sério”
de Allen com pouco – e, ás vezes, nenhum – senso de humor. Neste lado pode-se
perceber a influência de cineastas que o estadunidense idolatra como o italiano
Federico Felini (Ginger e Fred) e,
principalmente, o sueco Ingmar Bergman (O
Sétimo Selo). Dos mais de 50 filmes que Woody dirigiu, dá para contar nos
dedos os seus chamados filmes sérios: Interiores
(1978, que é puro Bergman), Setembro
(1987), A Outra (1988). A essa
escassa lista vem juntar-se o seu mais recente filme, Homem Irracional (2015).
Homem Irracional conta a história de Abe Lucas (o porto-riquenho Joaquin Phoenix, de Gladiador),
um professor de filosofia depressivo e alcoólatra e que acaba de chegar a uma
faculdade no interior dos EUA para lecionar. Devido a seu prestígio acadêmico,
sua chegada é muito comentada e badalada tanto pelos professores como pelos
estudantes. Abe desperta a atenção da professora Rita Richards (a estadunidense
Parker Posey, de Superman – O Retorno) e da brilhante e
bonita estudante Jill Pollard (a também estadunidense Emma Stone, de Birdman).
Apesar
de todas as atenções, Abe está tão desiludido com a vida que não se interessa
por mais nada, nem mesmo em ter um caso com Rita, que se entrega a ele
inteiramente. Porém, começa a se relacionar cada vez mais com Jill – que se
apaixona por ele - e, um dia no qual vão a um restaurante, ambos escutam a
conversa entre uma mulher e seus amigos com os quais comenta que, no processo
de seu divórcio, pode perder a guarda de seu filho devido ao juiz ser amigo de
seu ex-marido. Essa conversa causa uma reviravolta interior em Abe, que decide
matar o juiz por achar que, com isso, fará um favor ao mundo.
Literatura
e filosofia são duas paixões de Allen, que sempre as utilizou tanto em seus
filmes como nos livros e peças teatrais que escreveu. As referências à
filosofia podem ser vistas ao longo do filme com citações de e sobre filósofos
como, por exemplo, Martin Heidegger
(1889-1976). O roteiro de O Homem
Irracional, do próprio Allen, foi inspirado no romance Crime e Castigo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), que é citado no filme. Não é a
primeira vez que Woody inspira-se em um clássico da literatura. Em A Última Noite de Bóris Grushenko
(1975) a inspiração veio de Guerra e Paz,
do também escritor russo Leon Tolstói
(1828-1910).
No
romance de Dostoiévski, o ex-estudante de Direito Raskólnikov vive em extrema
miséria, divide a humanidade em ordinários e extraordinários e vive sob a
sombra de fazer algo importante. Um dia, Raskólnikov decide matar uma velha
agiota para roubar seus pertences e aliviar seus problemas financeiros. Para
ele, o crime é justificado porque, ao matar a agiota, estaria livrando o mundo
de uma pessoa ordinária que causa mal às outras. Entretanto, após o
assassinato, é atacado pelo remorso, mas é consolado por Sônia, uma prostituta,
filha do bêbado e funcionário público Marmeládov, que lhe mostra o caminho do
Evangelho e pede a ele que se entregue à polícia.
No
filme de Allen, Abe tem a ambição de escrever um livro sobre Heidegger, que
sempre acaba por adiar. Porém, após o assassinato do juiz, retoma com
entusiasmo o projeto, a vida e também o caso com Rita. Diferente de
Raskólnikov, Abe não tem nenhum remorso de seu crime, ao contrário, sente-se
orgulhoso. Quem acaba por sentir remorso é Jill, pois foi ela quem chamou a
atenção de Abe para a conversa sobre o juiz e, por sentir-se responsável pela
atitude de Abe, que gerou seu remorso, pede a ele que se entregue à polícia.
Abe é o Raskólnikov assassino, e Jill é, simultaneamente, o Raskólnikov
torturado pelo arrependimento e Sonia, que tenta abrir os olhos dele quanto à
imoralidade de seu ato e convencê-lo a fazer a coisa certa, isto é, render-se à
lei.
Homem Irracional tem a narração de Abe e Jill e, assim como Dostoiévski em seu romance,
Allen, por meio dessa narração, esmiúça as dúvidas e angústias e reproduz os
pensamentos do casal central, em particular o lado psicológico de Abe em
cometer o crime perfeito. Por ser um dos filmes sérios - e atípicos - do
diretor, não há risadas ou gargalhadas, no máximo um risinho de canto de boca.
Para
se ter uma ideia de como Homem Irracional é diferente dos outros que Woody realizou, a
trilha sonora não é aquela que o diretor costuma usar normalmente. Continua
sendo jazz, sim, mas não é o jazz antigo e tradicional de sempre, é um jazz
moderno, que acaba por combinar bem com os personagens, especialmente Abe.
A
fotografia do iraniano naturalizado francês Darius Khondji (que trabalhou com Allen em Igual a Tudo Na Vida, Meia-Noite em Paris, Para Roma Com Amor e Magia ao Luar) é muito bonita,
mostrando as belas paisagens da cidade estadunidense de Newport e seus
arredores, no estado de Rhode Island, onde o filme foi inteiramente feito.
Algumas
pessoas podem estranhar em ver Joaquin
Phoenix em um dos papéis principais, pois esse ator não aparenta ter o
perfil “Alleniano”. Entretanto, ele surpreende com uma atuação bastante
convincente, somados a uma aparência desleixada e uma barriga saliente (será
que é dele mesmo ou algum efeito digital?) que lhe dá um ar de decadência tanto
física como emocional e moral.
Emma Stone, que
trabalhou no filme anterior de Allen, Magia
ao Luar (2014), brilha intensamente. Tida como a nova musa do diretor, ela
mostra que não é à toa que é uma estrela que sobe rapidamente. Sua atuação é
esplêndida, digna de um Oscar – aliás, eu não vou achar nem um pouco estranho
se ela for indicada ao prêmio por este filme – e sua beleza delicada juntamente
com seu grande talento ainda podem torná-la uma atriz do primeiríssimo time de
Hollywood.
Quem
também surpreende no filme é Parker
Posey. Se Abe e Jill são Raskólnikov e Sonia, Rita é Marmeládov. Como o
leitor já deve ter percebido, o nome do pai da prostituta de bom coração deriva
da palavra “marmelada”. Não porque ele seja um doce de pessoa, mas porque não
possui um caráter firme. Assim também é Rita, tida como “fácil” na
universidade, que não hesita em terminar seu casamento para ficar com Abe,
apesar de desconfiar que ele seja um assassino. A atuação de Posey – conhecida
nos EUA como a rainha dos filmes independentes - agradou tanto a Allen, que ele
já a escalou para trabalhar em seu próximo filme, ainda sem título definido.
O
ritmo do filme é um pouco lento e há alguns personagens, como o namorado de
Jill (vivido pelo britânico Jamie
Blackley, de Se Eu Ficar), cuja
presença não interfere muito na trama, mas tem a habitual direção segura de
Allen e toca em dilemas morais de nossa sociedade nos dias de hoje: neste mundo
por muitas vezes insano, violento, ganancioso e mesquinho – principalmente
levando-se em conta o atual cenário dominado por uma crise política e econômica
e regida por uma doutrina neoliberal - estamos destinados à pequenez ou à
grandeza? As ideias movem o homem ou o homem realiza as ideias? Temos o direito
de decidir quem vive ou quem morre?
Desde
o seu lançamento no último Festival de Cannes,
a crítica estadunidense e europeia definiram Homem Irracional como “mediano” ou “um Woody Allen menor”. Mesmo
que seja um trabalho médio ou menor em relação aos seus filmes anteriores,
ainda assim é uma produção acima da média e, por ser justamente um filme
atípico de Woody Allen, que ainda vai dar muito o que falar, é que vale a pena
assisti-lo.
Não
vou revelar o final para não estragar a surpresa, mas, quando o filme termina,
vem a pergunta que não quer calar – principalmente para aqueles que assistiram
com atenção: será que além de Dostoiévski, Woody Allen também leu Machado de
Assis? Pois há algo de Brás Cubas nesse filme...
P.S.
– Para aqueles que se interessaram, mas, por algum motivo, não podem ler Crime e Castigo (um calhamaço de cerca
de 600 páginas), há várias adaptações do livro feitas para o cinema e a TV. A
minha sugestão vai para a versão feita na antiga União Soviética, em 1970.
Dirigida por Lev Kulidzhanov e estrelada por Georgi Taratorkin (como Raskólnikov) e Tatyana Bedova (Sonia), é considerada a melhor adaptação dessa obra de Dostoiévski.
No Brasil, o filme foi lançado em DVD na coleção “Grandes Livros no Cinema”, do
jornal Folha de São Paulo, e, atualmente, pode ser encontrado em sebos.
RESUMO DO FILME
Abe
Lucas é um professor de filosofia depressivo e alcoólatra e que não vê nenhum
sentido na vida. Abe conhece Jill Pollard, uma brilhante e bonita aluna. Um
dia, depois de ambos escutarem uma conversa em um restaurante, Abe começa a
recuperar a vontade de viver após decidir cometer um assassinato.
COTAÇÃO
Ótimo.
Veja aqui o trailer oficial de Homem Irracional (Legendado - HD):
Publicado no Observatório do Cinema em 25/08/2015 e no LinkedIn em 22/09/2015.
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