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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Crítica: O Jovem Karl Marx | O Manifesto de Jovens Comunistas



A juventude é um período decisivo na formação de uma pessoa, pois é durante esse mesmo período no qual a infância já foi deixada para trás e, após o período turbulento - mas, inevitável e necessário - da adolescência, no qual tudo e todos são questionados, começa a transição para a fase adulta, que irá ocupar e dominar o restante da vida de homens e mulheres. É o amadurecimento de ideias, conceitos e atitudes acumuladas e refletidas anteriormente e se torna a bússola a ser seguida daí por diante. Os homens e mulheres que estão nesse período são chamados de jovens adultos. 

Há vários exemplos de como esses jovens adultos podem sacudir o mundo com essas mesmas atitudes, conceitos e ideias. Nos esportes, podemos citar o futebolista brasileiro Pelé, campeão mundial com apenas 17 anos de idade; na esfera musical, a banda de Rock britânica The Beatles que, ao atingirem o sucesso global e mudarem completamente a música popular, tinham uma idade média de 20 anos; e, no cinema, o cineasta estadunidense Steven Spielberg que, aos 29 anos, inaugurou a era dos "Blockbusters" ("Arrasa-Quarteirões") com o filme campeão de bilheteria e vencedor de três Oscars, Tubarão (1975).

Os exemplos se estendem à política, sociologia, filosofia e economia com a publicação d' O Manifesto do Partido Comunista, de autoria do então jovem alemão Karl Marx (1818-1883) e do igualmente alemão e jovem Friedrich Engels (1820-1895). É sobre esses jovens adultos germânicos que o filme O Jovem Karl Marx irá contar. 

Karl Marx (o alemão August Diehl, de Trem Noturno para Lisboa) é um jovem jornalista de 26 anos que trabalha para o jornal Gazeta Renana que, devido aos seus incisivos artigos contra o governo da então Prússia (que, posteriormente, integraria a Alemanha), é preso pelas autoridades e exilado em Paris junto com a sua esposa, Jenny  von Westphalen (a atriz de Luxemburgo, Vicky Krieps, de Amor e Revolução). 

Friedrich Engels (o também alemão Stefan Konarske, de Valerian e a Cidade dos Mil Planetas), de 24 anos, é o filho de um rico industrial e reside na cidade de Manchester, Inglaterra, onde também está a fábrica de seu pai. Friedrich está impressionado com a miséria em que vivem os operários e não concorda com o modo como são tratados pelos patrões, principalmente quando uma operária irlandesa, Mary Burns (a britânica Hannah Steele, de O Destino de Uma Nação), é demitida por protestar contra esses mal tratos. Friedrich vai a procura de Mary para pedir ajuda para um livro que está escrevendo e nasce um romance entre ambos.

Engels vai a Paris e lá conhece Marx, com quem tem uma afinidade intelectual imediata. A partir daí, nasce uma grande amizade e ambos irão, com todas as suas forças, dedicarem-se à causa dos trabalhadores explorados pelos ricos e na construção do movimento comunista internacional.

Durante a ditadura militar que tiranizou e infernizou o Brasil por mais de 20 anos, Karl Marx e Friedrich Engels eram vistos pelos militares como dois demônios comunistas, enquanto a oposição os via como duas figuras míticas - o jornalista, escritor e político Fernando Gabeira chegou a dizer uma vez que Marx era "como Papai Noel". Seu livros eram terminantemente proibidos e, simultaneamente, avidamente procurados.  

Foi nessa época - eu tinha por volta de 15 anos - que tive meu primeiro contato com uma obra de Marx. Um colega de escola, com muita coragem e correndo um grande risco, trouxe para nós, da turma, vermos (escondidos, claro) nada mais nada menos que o primeiro volume de O Capital. Todo mundo ficou de queixo caído em ver o livro proibido e, como ato de desobediência civil, pedi emprestado para ler. Li a primeira página e parei. Não entendi nada.

Entretanto, a ditadura acabou, saiu pela porta dos fundos, e os livros de Marx e Engels, assim como de outros autores socialistas, deixaram de ser proibidos. Adquiri O Manifesto, li e, desta vez, entendi. Logo percebi algo: Engels e Marx não eram nem demônio, nem Papai Noel, mas dois grandes escritores intelectuais cuja obra não só resiste ao tempo como permanecem atuais, especialmente nesta época de feroz neoliberalismo econômico e político com retirada de direitos sociais e trabalhistas.

Quem for assistir O Jovem Karl Marx, deve achar que irá ver um filme panfletário, principalmente levando-se em conta que o cineasta haitiano Raoul Peck é um conhecido ativista político. Não deixa de ser verdade, pois o tom do filme é, decididamente, de esquerda. Porém, Peck teve o cuidado de não transformar a película em uma peça de propaganda de um partido e/ou governo embora seja, sem dúvida, uma obra ideológica. 

O Jovem Karl Marx procura mostrar as ideias que movimentam os personagens e como elas se aplicam na realidade cotidiana. Isso pode ser visto logo nas cenas iniciais nas quais Marx narra um conceito de propriedade enquanto, em terra alheia, camponeses pobres catam galhos de árvores do chão para usar como lenha e são punidos como criminosos ou, mais adiante, quando cita sua famosa frase "Os filósofos limitam-se a interpretar o mundo. O mais importante é transformá-lo".

Um mérito do filme é mostrar os personagens não apenas como homens e mulheres, mas, acima de tudo, como humanos, com qualidades, defeitos e manias, sem endeusá-los nem endemoniá-los. Eu mesmo fiquei surpreso ao constatar que Engels e Marx eram apreciadores de um bom charuto, algo que, de fato, não sabia.

Outro mérito do filme é o de dar a Friedrich Engels o seu devido valor. Explico: mesmo entre alguns militantes de esquerda, Engels sempre teve um papel coadjuvante em relação a Marx. Karl era um grande gênio e Friedrich, o seu amigo, mas pouco além disso, o que é uma grande injustiça. 

O filme demonstra que a influência de Engels sobre Marx foi decisiva tal como é visto na cena na qual aconselha o amigo a estudar os grandes economistas ingleses como, por exemplo, David Ricardo (1772-1823). E sempre vale a pena lembrar que Engels também é o autor de grandes obras econômicas, políticas e filosóficas tais como Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1880); A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), e A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845), que foi o livro que chamou a atenção de Marx - que o considerava um trabalho colossal - sobre seu amigo mais novo.

Mais um mérito do filme: o de mostrar as contradições e injustiças do sistema capitalista e a hipocrisia da classe burguesa para com o proletariado sem nenhum tipo de moralismo vulgar e barato. Uma cena que demonstra isso é quando Marx e Engels discutem com um típico industrial inglês sobre o trabalho de crianças nas fábricas. Logo percebe-se que qualquer semelhança daquela época com os dias de hoje, seja com crianças ou adultos, não é mera coincidência... 

E, além disso há a ingenuidade e arrogância dos socialistas utópicos e anarquistas, tendo estes como seu principal nome Pierre Proudhon (o francês Olivier Gourmet, de O Filho), que, ao invés de fazerem análises e estudos científicos da política e economia, ficam a construir castelos no ar.  

Raoul Peck tornou-se conhecido pelo grande público na cerimônia do Oscar deste ano, com o seu filme Eu Não Sou Seu Negro (2016), sobre o escritor negro estadunidense James Baldwin (1924-1987), que concorreu ao prêmio de Melhor Documentário. Mas, sua carreira em filmes para o cinema e a TV já tem quase 40 anos, com conquista de prêmios em vários festivais de cinema ao redor do mundo. 

Outros trabalhos seus que se destacam são Lumumba (2000), sobre o ex-primeiro-ministro e líder da independência da República do Congo (atualmente República Democrática do Congo), Patrice Lumumba (1925-1961); e Abril Sangrento (2005), filme feito para o canal de TV a cabo HBO sobre o genocídio em Ruanda, com Idris Elba (Thor: Ragnarok) e Debra Winger (Laços de Ternura) no elenco.

Peck tem uma direção firme e segura, principalmente na direção de atores, conforme veremos mais adiante. É um grande cineasta político e de denúncias ao nível de um Costa-Gavras (Desaparecido, Um Grande Mistério. Veja aqui uma entrevista dele). Porém ainda tem a mão um pouco dura para o humor como, por exemplo, em uma cena em que Marx, com pouco dinheiro, vai comprar charutos baratos. Poderia ter feito algo mais engraçado. Mas, apesar disso, para mim, é uma questão de tempo Peck ser, no mínimo, indicado ao Oscar de Melhor Diretor.

O elenco de O Jovem Karl Marx está particularmente muito bem na fita.

August Diehl tem uma ótima atuação como Marx e o interpreta tal como as pessoas imaginam que o Revolucionário era: polemista implacável, em particular com Proudhon, mas um marido e pai amoroso, com um grande senso de honra (se incomoda em ficar pedindo dinheiro emprestado); bem humorado e bastante sarcástico. Alguns críticos de cinema disseram que é uma visão estereotipada, mas quem ler uma de suas obras como, por exemplo Crítica ao Programa de Gotha (1875), ficará surpreso em ver esse sarcasmo em um texto político.

Stefan Konarske tem a sua carreira mais centrada na televisão alemã, principalmente em séries. No cinema, é um nome ainda novo (O Jovem Karl Marx é o seu terceiro filme), mas tem a postura de um veterano. Sua atuação está no mesmo nível de Diehl, e interpreta um Engels altruísta, irônico, romântico, mas tão Revolucionário quanto Marx. O entrosamento dos dois atores é simplesmente perfeito, tal como era o de Marx e Engels.

Vicky Krieps e Hannah Steele estão igualmente ótimas como Jenny  e Mary, as esposas de Karl e Friedrich. Ambas convencem na sua interpretação de mulheres de personalidade, nada  caseiras, insubmissas e emancipadas (algo inimaginável no século XIX), com Jenny sendo mais refinada devido a sua educação aristocrática, enquanto Mary já é mais dura por causa de sua vida como proletária. Mas, são os opostos que se atraem tanto na amizade das duas quanto no casamento com seus respectivos maridos. Mérito das intérpretes.

Sou de opinião que o filme deveria se chamar Os Jovens Karl Marx e Friedrich Engels, visto que é impossível falar de um sem falar de outro. E flui tão bem na tela que mal se sente o tempo passar. Talvez não devesse focar apenas na juventude dos personagens, deveria ter ido além, até a velhice. Vai ver não havia capital suficiente...

O Jovem Karl Marx é falado em inglês, francês e alemão, para atingir os principais pólos de cinema do mundo e, além do mais, o uso desses idiomas dá um caráter internacionalista ao filme.

A perfeita reprodução de época aliada à bela fotografia do alemão Kolja Brandt (Hector e a Procura da Felicidade) e a grandiosa trilha sonora do russo Alexei Aigui (Algo de Bom), fazem de O Jovem Karl Marx um espetáculo de primeiríssima linha, tanto que já começa a colher os frutos de sua produção impecável. 

O filme teve sua Première Mundial no prestigioso Festival de Berlim (exibido fora de competição). Na França, conquistou os prêmios de Melhor Filme e Melhor Roteiro (de autoria de Raoul Peck junto com Pascal Bonitzer, de Gemma Bovery) no Festival Internacional du Film de Fiction Historique, dedicado a filmes históricos; e, nos EUA,  conquistou o Grande Prêmio Founders no Festival de Traverse City, dedicado ao cinema independente, e que tem, como um de seus fundadores e atual presidente, o polêmico e genial cineasta e documentarista estadunidense Michael Moore (Fahrenheit 11 de Setembro). 

A "grande mídia" brasileira ficou meses em silêncio sobre O Jovem Karl Marx. Se não fosse por algumas pessoas que fizeram o upload do filme nas redes sociais, teria passado completamente em branco. Sete meses após o seu lançamento no exterior, foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e finalmente, começaram a aparecer as primeiras matérias e críticas da obra por aqui, embora fosse possível perceber uma certa má vontade. E o lançamento comercial está ocorrendo somente agora, prestes a entrarmos em 2018! 

Boicote? Se lembrarmos que o que ocorreu com o grande filme brasileiro Aquarius, preterido pelo atual governo brasileiro - tido por milhões de pessoas como golpista - para ser o candidato do país ao Oscar de Filme Estrangeiro devido ao protesto de equipe e elenco contra o impeachment de Dilma Rouseff durante o Festival de Cannes de 2016, não é uma ideia descabida.  

O Jovem Karl Marx é um filme muito bom, esclarecedor, desmistificador, necessário, inspirador e que chegou na hora certa, em um momento em que grupos autodenominados "democráticos e liberais" fazem  campanha, pressão e censura contra exposições de arte; "humoristas" fazem programas de TV e filmes para o cinema com piadas de mau gosto, racistas, homofóbicas, misóginas, gordofóbicas e, quem não gosta ou não concorda, deve ser "enquadrado"; igrejas "cristãs" com tolerância zero para quem ousa ter outra crença; e "reformas" educacionais, trabalhistas e previdenciárias que reduzem as pessoas à condição de mão-de-obra barata e massa de manobra.

Tem razão Jenny quando diz no filme que felicidade requer rebelião e, numa época na qual a humanidade parece estar indo para atrás em todos os aspectos, mesmo com o grande desenvolvimento tecnológico atual, é preciso, mais do que nunca, rebelar-se contra estes tempos sombrios para se obter a felicidade de uma vida digna. E sempre vale a pena relembrar as palavras de ordem do Manifesto dos jovens comunistas Marx e Engels:


TRABALHADORES DE TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS!


FICHA TÉCNICA
  • Título Original: Le Jeune Karl Marx
  • Direção: Raoul Peck
  • Elenco: August Diehl (Karl Marx), Stefan Konarske (Friedrich Engels), Vicky Krieps (Jenny von Westphalen), Olivier Gourmet (Pierre Proudhon), Hannah Steele (Mary Burns)
  • Roteiro: Raoul Peck e Pascal Bonitzer
  • Música: Alexei Aigui
  • Fotografia: Kolja Brandt
  • Duração: 118 minutos
  • Ano: 2017
  • Lançamento comercial no Brasil: 28/12/2017

RESUMO DO FILME
Conta a juventude de Karl Marx, período no qual ele luta para expor sua ideologia, o início de seu casamento com Jenny von Westphalen e a sua amizade com Friedrich Engels.
COTAÇÃO
              ⭐⭐⭐⭐½

Veja o trailer oficial de O Jovem Karl Marx (legendado - HD):


Publicado no LinkedIn, em 29/12/2017, e no Adoro Cinema, 03/01/2018.

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