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sábado, 4 de maio de 2019

Crítica: Se a Rua Beale Falasse | Realista, sincero e comovente



OSCAR 2019: venceu na categoria de melhor atriz coadjuvante.

Clementine "Tish" Rivers (Kiki Lane, da série Chicago Med: Atendimento de Emergência) e Alonso "Fonny" Hunt (Stephan James, da série Homecoming) conhecem e amam um ao outro desde a infância e, ao chegarem à idade adulta, tornam-se amantes e planejam ter uma vida juntos. Porém, Fonny é preso acusado de ter violentado a porto-riquenha Victoria Rogers (Emily Rios, de Vovó... Zona 3: tal pai, tal filho) e Tish, que está grávida, com a ajuda de sua família, principalmente da mãe, Sharon (Regina King, de Ray), tenta provar a inocência de seu amado e tirá-lo da cadeia. 

Se a Rua Beale Falasse é a adaptação para o cinema do romance de mesmo nome do escritor James Baldwin (1924-1987), autor que nos últimos anos vem sendo redescoberto tanto pelo público literário quanto pelo cinematográfico. Um exemplo é o documentário biográfico Eu Não Sou Seu Negro (2016), dirigido pelo cineasta haitiano Raoul Peck (de O Jovem Karl Marx. Veja a crítica aqui) e que concorreu ao Oscar da categoria.

Sendo negro, Baldwin  conseguiu destacar-se em um meio até então dominado por brancos tendo como temas o preconceito racial, pressões sociais e psicológicas, a miséria, a criminalidade, o homossexualismo e bissexualismo, e o movimento dos direitos civis, que estava em alta na década de 1960 e dava esperança em dias melhores para a comunidade afro-americana. O autor viveu várias dessas experiências na própria carne.

Tanto nas páginas quanto nas telas, Se a Rua Beale Falasse conta uma história de dor, retratando com duro realismo o cotidiano da comunidade negra e pobre dos bairros periféricos da grande metrópole que é Nova York, mas também é uma história de amor e esperança apesar de todo o sofrimento e a família - em particular a família negra - tem grande importância na manutenção dessa esperança e na vida de sobreviventes que também são resistentes.

O cineasta e roteirista Barry Jenkins surpreendeu o mundo, em 2017, quando o drama que dirigiu, Moonlight, conquistou o Oscar de melhor filme superando o favorito La La Land, tendo também conquistado os prêmios de melhor roteiro adaptado (de sua autoria) e melhor ator coadjuvante (para Mahershala Ali, da franquia Jogos Vorazes).

Em Se a Rua Beale Falasse, Jenkins confirma que os prêmios obtidos com Moonlight não foram por mero acaso. Seu trabalho na direção é esplêndido, no qual consegue demonstrar que mesmo em bairros pobres, mal cuidados, decadentes e violentos, há poesia - no que é ajudado pela fotografia de James Laxton (habitual colaborador do cineasta). 

E desse mesmo  modo  poético mostra toda a dor e todo o amor do relacionamento do casal central, seja quando Fonny e Tish encontram-se na prisão ou quando amam-se pela primeira vez (uma cena belíssima, muito bem filmada e interpretada).

É preciso também destacar uma cena marcante devido à sua força, intensidade e realismo: o diálogo entre Fonny e seu amigo Daniel (Brian Tyree Henry, de Hotel Artemis), que acabou de sair da cadeia, onde cumpriu uma pena de dois anos, sobre o que é ser negro nos EUA, um país que, na ótica de ambos, odeia negros, os brancos são vistos por eles como verdadeiros diabos e como essa guerra racial atinge o lado mais fraco, enviando-os para o inferno das prisões, mesmo que não tenham feito nada. 

Entretanto, Jenkins não teria obtido resultados tão bons se não tivesse trabalhado com um elenco tão competente e talentoso. Kiki Lane e Stephan James apresentam um timing tão bom que é difícil acreditar que não foram sequer indicados  para o Globo de Ouro e o Oscar. Raramente, um casal de um filme demonstrou um amor tão bonito e verdadeiro.

Kiki faz sua estreia no cinema (seus trabalhos anteriores foram um curta-metragem independente e um episódio da série Chicago Med: Atendimento de Emergência), mas atua como uma veterana tamanha desenvoltura, naturalidade e sensibilidade em sua performance. 

Stephan é mais experiente. Fez sua estreia em 2010 no telefilme Minha Babá é Uma Vampira. Sua estreia no cinema foi em 2012, no drama Home Again, para o qual foi nomeado para a categoria de melhor ator no Canadian Screen Awards, importante premiação local. Em 2019, no Globo de Ouro, obteve uma indicação ao prêmio de Melhor Ator em série de TV por Homecoming. Faz parte da nova e talentosa safra de atores afro-americanos que inclui nomes como Michael B. Jordan (franquia Creed) e Chadwick Boseman (Pantera Negra. Veja a crítica aqui). A continuar com essas ótimas atuações, para Stephan o céu é o limite.

Vencedora de três prêmios Emmy (o Oscar da TV estadunidense) pelas séries American Crime (em 2015 e 2016) e Seven Seconds (2018) e um Globo de Ouro neste ano, só faltava mesmo o Oscar para premiar o talento imenso de Regina King. Sua performance é sensível e forte ao mesmo tempo refletindo a personalidade de Sharon Rivers, mulher e mãe de família negra proletária, que deve desdobrar-se em várias para cuidar e ajudar a sua família. As mulheres e mães negras brasileiras vão identificarem-se com ela.

Se a Rua Beale Falasse também tem os seus coadjuvantes de luxo: Diego Luna (Rogue One - Uma História Star Wars. Veja a crítica aqui) como Pedrocito, o simpático garçom de um restaurante e amigo de Fonny, e David Franco (franquia Vizinhos), como Levy, um jovem judeu dono de um imóvel que Fonny e Tish pretendem alugar e que sabe muito bem o que significa preconceito. A presença destes dois bons atores ajuda a dar mais brilho à produção.

Se a Rua Beale Falasse é um filme realista ao mostrar as agruras da comunidade afro-americana que, apesar de algumas conquistas civis, políticas e sociais obtidas de algumas décadas para cá, continuam até hoje. É sincero ao mostrar o cotidiano dessa comunidade com tudo de bom e ruim que tem. E é comovente sem necessidade de apelar para o dramalhão e a pieguice para com as dores e assim como para os amores e por mostrar que a esperança ainda existe.

Gostaria de finalizar reproduzindo a definição que o próprio James Baldwin fez a respeito da rua Beale e que aparece no começo do filme (tradução livre feita por mim):

"A rua Beale é uma rua de Nova Orleans, onde meu pai, Louis Armstrong e o Jazz nasceram.

Toda pessoa negra nascida na América nasceu na rua Beale, na vizinhança negra de alguma cidade americana (...). A rua Beale é o nosso legado. Este romance trata da impossibilidade e possibilidade, a necessidade absoluta para dar expressão a este legado.

A rua Beale é uma rua barulhenta. É deixado ao leitor discernir o significado da batida dos tambores".



FICHA TÉCNICA

  • Título Original: If Beale Street Could Talk
  • Direção: Barry Jenkins
  • Elenco: Kiki Lane (Clementine "Tish" Rivers), Stephan James (Alonzo "Fonny" Hunt), Regina King (Sharon Rivers), Teyonah  Parris (Ernestine Rivers), Colman Domingo (Joseph Rivers), Michael Beach (Frank Hunt), Aunjanue Ellis (Sra. Hunt), Emily Rios (Victoria Rogers), Diego Luna (Pedrocito), Dave Franco (Levy), Finn Wittrock (Hayward)
  • RoteiroBarry Jenkins (baseado no livro de James Baldwin)
  • Fotografia: James Laxton
  • Duração: 117 minutos
  • Ano: 2018
  • Lançamento comercial no Brasil: 07/02/2019

RESUMO DO FILME

Fonny e Tish amam-se desde a infância. Fonny é acusado de estupro, preso e Tish, grávida e com a ajuda de sua mãe, tenta libertar seu amado da cadeia.


COTAÇÃO
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Veja aqui o trailer oficial de Se a Rua Beale Falasse (legendado - HD):



Publicado no LinkedIn e no AdoroCinema em 04/05/2019.

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