quarta-feira, 28 de março de 2018

Crítica: Árvores Vermelhas | O Horror em Cores Invertidas


Além de destruição e morte, a Segunda Guerra Mundial gerou muitas mudanças no panorama global, e no da Europa em particular. Foram mudanças políticas (com a ascensão das superpotências EUA e URSS, que, literalmente, dividiram o mundo entre si, até quase o final do século XX), geográficas (países desapareceram e outros surgiram), culturais e também pessoais, como mostra o documentário Árvores Vermelhas.

Alfred Willer é o filho de um renomado químico judeu em Praga,  capital da então Tchecoslováquia (atual República Tcheca), quando os nazistas assumem o poder e nomeiam o cruel e sanguinário Reinhard Heydrich (1904-1942) – um dos arquitetos do Holocausto Judeu e que tinha a sinistra alcunha de “O Carniceiro de Praga” - como o interventor local. A partir daí começam as perseguições aos opositores do regime e, principalmente, aos judeus. A família Willer foi uma das doze famílias judias de Praga que sobreviveram ao massacre perpetrado pelo acólitos de Hitler.

Após a Primeira Guerra Mundial e o triunfo da Revolução Russa, houve uma efervescência cultural na Europa, com o surgimento de novos centros intelectuais rivalizando com Londres e Paris. Dentre estes novos centros destacavam-se Moscou, Viena e Berlim da República de Weimar (período democrático que antecedeu o domínio nazista). Muitos intelectuais, cientistas e artistas do período eram de ascendência judaica tais como o cineasta russo Serguei Eisenstein (de O Encouraçado Potemkin), o médico austríaco Sigmund Freud (pai da psicanálise) e o físico alemão Albert Einstein (criador da Teoria da Relatividade).

Praga também era um dessas novas metrópoles intelectuais e lar do escritor Franz Kafka (1883-1924), também de ascendência judaica, autor de A Metamorfose – entre outras grandes obras. Kafka era fanático por cinema e um de seus romances, O Processo, foi adaptado para o cinema, em 1962, pelo cineasta estadunidense Orson Welles (Cidadão Kane) e com o também estadunidense Anthony Perkins (Psicose), no papel de Joseph K. Suprimir a cultura Tcheca era uma das principais tarefas de Heydrich.

Também é importante destacar a forte influência linguística da Alemanha nos países que lhes eram fronteiriços como a própria Tchecoslováquia e a Polônia. Além de suas línguas naturais, não raro os habitantes locais falavam igualmente o alemão e a comunidade judaica o ídiche, dialeto dos judeus da Europa que era uma mistura das línguas alemã e hebraica e que, atualmente, é falada principalmente pelos judeus ultra-ortodoxos dos EUA.

Essa introdução histórica e cultural pode ter sido um pouco longa, mas necessária para uma melhor compreensão de Árvores Vermelhas, pois são pontos destacados muito propriamente no filme. O pai de Alfred Willer, em sua profissão de químico, fazia parte dessa intelectualidade e, por isso, era tolerado pelos nazistas mesmo sendo judeu, pois necessitavam de seus conhecimentos. O jovem Alfred também tornou-se químico, mas depois seria tomado de paixão pela arquitetura, profissão que viria a seguir na idade adulta.

A diretora Marina Willer não é uma novata no ramo cinematográfico, pois já havia dirigido, em conjunto com Fernando Kinas, o documentário em curta-metragem Cartas da Mãe (2000), baseado no livro do saudoso cartunista, escritor e humorista Henfil (1944-1988), e que conquistou o Prêmio do Público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Árvores Vermelhas e o seu primeiro longa-metragem e a realização de um antigo projeto: o de contar a vida de seu pai.

Marina, que também é a autora do roteiro junto com Brian Eley (Horrid Henry: The Movie) e a estreante Leena Teeley , faz parte da nova geração de mulheres cineastas ao lado de nomes como a estadunidense Patti Jenkis, de Mulher-Maravilha (2017, veja a crítica aqui).


Embora seja apenas o seu segundo filme na direção, Marina tem a segurança de uma veterana, mostrando imagens poéticas e belíssimas, no que é ajudada pela fotografia de César Charlone (indicado ao Oscar por Cidade de Deus), Fábio Burtin (Ensaio Sobre a Cegueira) e Jonathan Clabburn (Miss Landmine) e utilizando–se de sua experiência de designer profissional.

Marina consegue mesclar essas lindas imagens de sonho com as de um típico documentário de maneira harmoniosa. Essa mescla fez com que vários críticos do exterior definissem Árvores Vermelhas como um ensaio. Definição essa, a meu ver, correta, pois, por ser um projeto pessoal, é um documentário bastante experimental.

A experimentação de Marina em Árvores Vermelhas faz com que o filme tenha um ritmo mais lento que outros do gênero, o que pode fazer o espectador comum sentir–se um pouco entediado, mas a história de Alfred Willer prende a atenção, o que compensa o ritmo arrastado.

Alfred surpreende ao demonstrar perfeito domínio da língua portuguesa e falar praticamente sem sotaque. Ao retornar à sua terra natal, passando inclusive por fábricas abandonadas desde a guerra, graças a uma memória privilegiada, ele assume a posição de um contador de histórias dos tempos passados, que inclui a retaliação nazista pelo atentado que matou Heydrich e o episódio de sua vida que dá nome ao filme e o fez descobrir que sofria de daltonismo.

Segundo o Dr. Drauzio Varela, "O daltonismo é um distúrbio na visão que interfere na percepção das cores. Sua principal característica é a dificuldade para distinguir o vermelho e o verde e, com menos frequência, o azul e o amarelo" (veja aqui). As cores podiam estar trocadas, mas o horror da guerra, não. Aliás, esse horror nunca muda, independente das cores. Esse impacto de cores também pôde ser sentido quando Alfred e seu pai imigraram para o Brasil, com a sua exuberante natureza tropical misturada com selvas de pedra.

A trilha sonora supervisionada por Eliza Thompson (Entrevista Com o Vampiro) e Kie Savidge (Tomb Raider: A Origem) é bastante eclética indo desde a música clássica até canções de Leonard Cohen (1934-2016), que aumenta o clima de experimentalismo e poesia, reforçada pela narração de Tim Pigott-Smith (Victoria e Abdul: O Confidente da Rainha), que faleceu logo após o término das filmagens e para quem o filme foi dedicado.

Árvores Vermelhas é um trabalho de amor, tanto de uma filha para com seu pai, como para a humanidade e o próprio cinema. Em uma época na qual se repetem eventos que geram manifestações de  ódio, racismo, xenofobia e intolerância política e religiosa que, anteriormente, levaram a dois conflitos globais, este ensaio-documentário experimental e poético é urgente, necessário e bem-vindo. 


FICHA TÉCNICA
  • Título Original: Red Trees
  • Direção: Marina Willer
  • Narração: Tim Pigott-Smith
  • RoteiroMarina Willer, Brian Eley, Leena Teelen 
  • Supervisão de Música: Eliza Thompson, Kie Savidge
  • Fotografia: César Charlone, Jonathan Clabburn, Fábio Burtin
  • Duração: 87 minutos
  • Ano: 2017
  • Lançamento comercial no Brasil: 29/03/2018

          RESUMO DO FILME

Alfred Willer e seu pai fogem do governo nazista na Tchecoslováquia, durante a Segunda Guerra Mundial, e emigram para o Brasil.

COTAÇÃO
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Veja aqui o trailer oficial de Árvores Vermelhas (original em inglês - HD):


Publicado no LinkedIn e no AdoroCinema em 28/03/2018.

terça-feira, 20 de março de 2018

Crítica: Château-Paris | Sonhos de Marreteiros


A crise financeira que assola a Europa desde 2008 em conjunto com as guerras que vem ocorrendo no Oriente Médio, em particular na Síria, alterou muito a vida - nem sempre para a melhor - de imigrantes e refugiados que foram ao Velho Continente em busca de uma nova vida. Uma dessas mudanças foi o aumento do tão temido desemprego e do trabalho informal. É sobre essas consequência que o filme francês Château-Paris tenta falar.

Charles (Jacky Ido, de Bastardos Inglórios) é um malandro simpático e elegante que vive no bairro de Château d'Eau e ganha a vida levando clientes para o salão de beleza de Djenaba (Félicité Wouassi, de Assassino(s)), de quem recebe comissão, mas sonha em ter o seu próprio salão. Enquanto tenta subir na vida, tem que aguentar as confusões do esculachado Moussa (Jean-Baptiste Anoumom, de Paulette), do flerte de Sonia (Tatiana Rojo, de Bem-vindo à Marly-Gomont) e da concorrência de Bébé (o estreante Eric Abrogoua).

Ao assistirem Château-Paris, os espectadores podem surpreenderem-se ao verem uma cena bastante comum por aqui, mas, para muitos, impensável em país considerado de primeiro mundo como a França: marreteiros vendendo produtos e/ou serviços de todos os tipos ao público em geral. 

Mas, não deveria ser uma surpresa, pois a França foi - e ainda é - um dos países que mais sofreram com a crise financeira que ocorre na Europa nestes últimos dez anos. Como em qualquer país que passa por esse tipo crise, os marreteiros são uma consequência bastante natural dela. E são as camadas mais desfavorecidas da população - neste caso os pobres, imigrantes e refugiados - quem mais vivem da informalidade, mas que, ainda assim, não deixam de sonhar em progredir.

Não é a primeira vez que o cinema francês retrata essa situação. Em Samba (2015, veja a crítica aqui), é também mostrada a situação desses mesmos imigrantes e refugiados em sua luta pela sobrevivência e por uma vida digna de um modo sério, embora com toques de humor.

Esse, aliás, é o problema de Château-Paris. Embora se apresente como comédia, não consegue desenvolver-se como tal ainda que tenha uma ou outra boa piada como por exemplo, o apetite de Moussa por dinheiro.

Dirigido a quatro mão por Cédric Ido (O Milagre em Sant'Anna) e Mody Barry (Amém), que fazem sua estreia em longa-metragem (seu trabalhos anteriores são como ator, efeitos especiais e em curtas-metragens), mostram sua inexperiência nesse gênero, com uma direção e um roteiro sem caminhos claros e com final xoxo. 

O que é uma pena pois a ideia do filme em si é boa e poderia ter gerado uma comédia social e reflexiva. Ou seja, tinha tudo para dar certo, mas não deu, assim como na comédia estadunidense Irmãs (2016, veja a crítica aqui).

Entretanto, os diretores acertam ao mostrar um outro lado de Paris. Não a de cidade-luz que todos conhecem, mas a de outro tipo de luz: a dos bairros multi-étinicos, nos quais predominam imigrantes africanos, asiáticos e do Oriente Médio, que tem brilho próprio que refletem no seu visual, seu modo falar e sua música - a trilha sonora é um outro acerto do filme.

O elenco de Château-Paris é quem acaba por salvar o filme de um desastre total. Assim como em Samba, vários atores são ou tem ligações com imigrantes como, por exemplo, o irmão do diretor Cédric, Jacky Ido, que é natural de Burkina Faso, antiga colônia francesa.

Jacky Ido é a maior razão para assistir Château-Paris, pois ele é um ator muito bom, simpático, carismático e cheio de charme, que faz com que os espectadores imediatamente gostem de seu personagem, Charles, tal qual ele mesmo diz, "como o príncipe". Na verdade, ele é o rei deste filme!

Jean-Baptiste Anoumon é outro ator de talento que salva o filme, com as melhores tiradas cômicas. Tatiana Rojo e Félicité Wouassi , duas atrizes igualmente talentosas, fazem o contraponto realista como duas mulheres batalhadoras e de personalidade marcante em busca de um lugar ao sol, sendo que a personagem de Tatiana, Sonia, tem o sangue bem quente e não se intimida com o marginal Bébé, feito pelo estreante Eric Brogoua, que está igualmente bem e pode ainda vir a ter boa carreira no cinema. 

Na sua indecisão em ser ou uma comédia escrachada ou social, ou política ou simplesmente uma comédia, Château-Paris desperdiça talentos e perde uma grande oportunidade de tratar com bom humor de assuntos sérios e atuais e que ainda irão perdurar por um bom tempo. É realmente uma pena.  



FICHA TÉCNICA
  • Título Original: La Vie de Château
  • Direção: Modi Barry e Cédric Ido
  • Elenco: Jacky Ido (Charles), Tatiana Rojo (Sonia), Jean-Baptiste Anoumon (Moussa), Félicité Woaussi (Djenaba), Giles Cohen (Dan), Eric Abrogoua (Bébé)
  • RoteiroNowen Letanoux
  • Música: Nicola Tescari
  • Fotografia: Antoine Monod
  • Duração: 81 minutos
  • Ano: 2017
  • Lançamento comercial no Brasil: 22/03/2018

          RESUMO DO FILME

No bairro Château d'Eau, em Paris, os salões de beleza competem entre si para trazer mais clientes. O malandro e simpático Charles usa de todos os truques para que o seu salão seja o mais procurado, mas ele tem outros planos.

COTAÇÃO

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Veja aqui o trailer oficial de Château-Paris (legendado - HD):



Publicado no AdoroCinema e no LinkedIn em 20/03/2018.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Crítica: O Passageiro | Dilema moral em uma viagem alucinante sobre trilhos


Neste mundo atual mergulhado em diversas crises - política, econômica, financeira, social e, em particular, moral - não raro nos perguntamos se fazer as coisas do jeito certo realmente adianta e vale a pena. Este dilema moral é a linha-mestra que conduz o filme O Passageiro

Michael MacCauley (o norte-irlandês Liam Neeson, de A Lista de Schindler) é um imigrante irlandês que vive em Nova York. Ex-policial, atualmente trabalha como corretor de seguros em uma vida rotineira, mas tranquila junto com a esposa Karen (a estadunidense Elizabeth McGovern, de Era Uma Vez na América) e os filhos. Todos os dias pega o trem suburbano para ir ao trabalho, de modo que acaba por conhecer, ainda que superficialmente, os outros passageiros que fazem o mesmo trajeto como, por exemplo, o velho Walt (o estadunidense Jonathan Banks, da série de TV Better Call Saul).

Em um dia normal de trabalho, é chamado pelo diretor da firma que o informa que está demitido, mesmo tendo trabalhado corretamente no local por dez anos. Arrasado, Michael vai até um bar e é consolado pelo amigo e ex-colega policial, Alex Murphy (o também estadunidense Patrick Wilson, de Prometheus). Lá, também encontra outro ex-colega policial recentemente promovido a capitão, David Hawthorne (o neozelandês Sam Neill, da franquia Parque dos Dinossauros).

Michael pega o trem para casa e uma mulher chamada Joanna (a também estadunidense Vera Farmiga, de Amor Sem Escalas) senta-se perto dele e pergunta: se fosse-lhe pedido para fazer algo a qual houvesse consequências que ele não saberia quais seriam, mas que afetaria um dos passageiros do trem, o faria? Nessa hipotética situação receberia uma quantia em dinheiro e, se realizar o pedido, receberá uma quantia extra maior. Joanna diz que, se aceitar a proposta, deve encontrar um passageiro que viaja no mesmo trem. 

Joanna se retira e Michael encontra a primeira quantia em dinheiro no banheiro do trem, mas reluta em continuar com a proposta. Ele recebe um telefonema de Joanna que diz que, se não fizer o que foi proposto, isto custará a vida de todos os passageiros e de sua família.

Este é o quarto trabalho realizado por Liam Neeson em conjunto com o cineasta espanhol Jaume Collet-Serra (de Águas Rasas). Os anteriores foram Desconhecido (2011), Sem Escalas (2014) e Noite Sem Fim (2015). Todos tem em comum serem thrillers de ação com recepção morna por parte da crítica, mas que vão bem na bilheteria. O Passageiro segue essa linha, mas difere dos outros em dois pontos.

O primeiro ponto é a continuação do resgate de uma antiga tradição do cinema: filmes cujas histórias ocorrem durante uma viagem de trem. Esse resgate foi iniciado o ano passado com Assassinato no Expresso do Oriente, do ator e cineasta norte-irlandês Kenneth Branagh (franquia Thor), que é o remake do filme homônimo de 1974 do cineasta estadunidense Sidney Lumet (Um Dia de Cão). 

Esse é um tipo de filme que sempre agradou o público de cinema em geral, pois vários temas podem ser encaixados nele. Podemos citar como exemplos Noite Tenebrosa (1946), da série de filmes de Sherlock Holmes interpretado pelo ator sul-africano Basil Rathbone (Farsa Trágica); Expresso do Horror (1973), com os Mestres do Terror Christopher Lee (saga O Hobbit) e Peter Cushing (saga Star Wars); o thriller Expresso Para o Inferno (1985), do cineasta russo Andrei Konchalovsky (Ray) e com Jon Voight (Animais Fantásticos e Onde Habitam), Eric Roberts (Batman, o Cavaleiro das Trevas) e Rebecca de Mornay (A Mão Que Balança o Berço) no elenco; e a comédia Jogue a Mamãe do Trem (1987), dirigido e estrelado por Danny DeVito (Irmãos Gêmeos) e com Billy Crystal (O Comediante). 

Sempre que possível, as grandes produções procuram incluir cenas passadas em um trem como, por exemplo, no primeiro filme da franquia Missão Impossível (1996), dirigido por Brian De Palma (Dublê de Corpo) e estrelado por Tom Cruise (Feito na América). 

O segundo ponto, que pode passar desapercebido para alguns espectadores devido às movimentadas cenas de ação, mas mostra-se atual e importante nos dias de hoje: o dilema no qual nos perguntamos se vale a pena viver e agir do modo correto, se ser "certinho" realmente compensa.

As confrontações de Michael com esse dilema também são as nossas, pois muitos de nós já passamos pela experiência de sermos descartados de um emprego no qual foram dedicados muitos anos de nossas vidas e o fato de termos sido leais à empresa, seguido as normas tais como nos foram passadas são coisas irrelevantes para uma típica companhia de um sistema capitalista, neoliberal e, no caso do Brasil, de "reforma" trabalhista.

E o fato de Michael estar com 60 anos (Liam Neeson tem, na verdade, 65 anos), faltando apenas cinco anos para a sua aposentadoria, não só aumenta nossa identificação com o personagem (devido à infame "reforma" da previdência proposta pelo "presidente vampirão" Michel Temer, cuja legitimidade no cargo é constantemente contestada), como também mostra o descaso e a crueldade do "estado mínimo" neoliberalista para com pessoas da Melhor Idade.*

E, devido a tudo isso, vem a pergunta: Vale a pena ser honesto? Devemos mesmo fazer as coisas direito com tanta corrupção ao nosso redor vindo de instituições que, teoricamente, deveriam nos proteger como, por exemplo, a polícia?

Em O Passageiro a resposta para essas perguntas é sim. A verdade é que o filme é cheio de clichês, tal como os bandidos cruéis que matam sem dó nem piedade e que, ao final, tem um fim merecido. Mas, esses mesmos clichês são usados corretamente. O diretor Collet-Serra mostra bastante competência nas cenas de ação e suspense e na direção de atores, principalmente de Liam Neeson.

Liam Neeson está no seu período de maturidade como ator e sua atuação reflete essa maturidade. Ele está muito bem no papel de homem trabalhador e honesto que, ao sofrer as intempéries da vida e estar com poucas condições de enfrentá-las, tem sua consciência torturada entre continuar no caminho certo ou seguir a trilha sedutora, rápida e fácil do "lado negro da Força". E nas cenas de ação demonstra boa forma física (foi pugilista amador na sua juventude).

Vera Farmiga faz um tipo de personagem que eu aprecio muito em filmes: fisicamente não aparece o tempo todo, mas sente-se a presença dela por toda a trama, seja falando ao celular ou não. E ela interpreta uma vilã muito dura, implacável, do tipo que ao se olhar pergunta-se: "Como ela pode ser tão má sendo tão bonita?".

Sam Neill e Elizabeth McGovern poderiam ter sidos os coadjuvantes de luxo da fita, mas, tiraram o "de luxo" e ficaram apenas como coadjuvantes. Neill ainda fica com algum destaque como o chefe de polícia que aparece quase ao final da história durante um momento de tensão. Já Elizabeth está tão discreta como a esposa de Liam que mal aparece. Desperdício de talentos.

Jonathan Banks está bem como idoso resmungão Walt e o britânico Shazad Latif (da série Star Trek: Discovery) também chama a atenção como o arrogante e insuportável corretor da bolsa de valores. Quanto a Patrick Wilson e ao restante do elenco, estão adequados aos papéis designados e não comprometem.

A trilha sonora do espanhol Roque Banõs (O Homem nas Trevas) também está adequada para um thriller de ação. Já a fotografia do canadense Paul Cameron (da franquia Piratas do Caribe) achei um tanto escura, mas acredito que isso deva mais ao equipamento que exibiu o filme do que ao trabalho de Paul em si.

Uma curiosidade: o título original em inglês, The Comutter, que foi traduzido como O Passageiro não está incorreto, mas é mais usado para definir um passageiro costumaz ou habitual, isto é, que tem o hábito de pegar o transporte público em dias e horários de forma regular.

O Passageiro entrega ao público o que promete: uma viagem de trem alucinante com boas atuações do seu elenco principal. E, de quebra, em sua premissa oferece temas para pensar e refletir, de modo que acaba por se tornar um filme acima da média no gênero e que vai agradar o público brasileiro assim como o fez no exterior - foi bem nas bilheterias, recuperou o investimento e deu lucro. Podem assistir sem receio de desperdiçar tempo e dinheiro.


*Quem quiser aprofundar-se mais sobre o assunto, sugiro o documentário Capitalismo: Uma História de Amor (2009), do polêmico e genial documentarista estadunidense Michael Moore (Fahrenheit 9/11). 
 

FICHA TÉCNICA
  • Título Original: The Commuter
  • Direção: Jaume Collet-Serra
  • Elenco: Liam Neeson (Michael MacCauley), Vera Farmiga (Joanna), Patrick Wilson (Detetive Alex Murphy), Jonathan Banks (Walt), Elizabeth McGovern (Karen MacCauley), Sam Neill (Capitão David Hawthorne)
  • RoteiroByron Willinger, Philip de Blasi
  • Música: Roque Baños
  • Fotografia: Paul Cameron
  • Duração: 105 minutos
  • Ano: 2018
  • Lançamento comercial no Brasil: 08/03/2018

          RESUMO DO FILME

Um ex-policial que tornou-se vendedor de seguros é obrigado a descobrir a identidade de um passageiro do trem no qual viaja. Se não o fizer, pode custar a vida dos outros passageiros e de sua família.

COTAÇÃO
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Veja aqui o trailer oficial de O Passageiro (legendado - HD):



Publicado no LinkedIn em 05/03/2018 e no AdoroCinema em 08/03/2018.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Crítica: Um Gato de Rua Chamado Bob | A fábula de um sem-teto e seu mascote

NOTA: Caríssimo público cinéfilo de Panorama do Cinema, conforme o prometido, aqui está, ainda que com grande atraso, a crítica do filme Um Gato de Rua Chamado Bob.

De um modo geral, uma fábula é definida como uma pequena narrativa em prosa ou verso em que se aproveita a ficção alegórica para transmitir uma verdade ou a reflexão de uma moral em que há a participação de pessoas e animais (e, algumas vezes, de seres inanimados). Os puristas podem até não concordar, mas esta é um definição que encaixa-se muito bem no filme Um Gato de Rua Chamado Bob.

James Bowen (Luke Treadaway, de Ataque ao Prédio) é um músico desempregado e sem-teto que vive nas ruas de Londres, ganha uns poucos trocados tocando seu violão, é viciado em drogas e seu pai (Anthony Head, de Motoqueiro Fantasma: Espírito de Vingança), madrasta (Beth Goddard, de X-Men: Primeira Classe) e o restante de sua família não querem saber dele. Após sobreviver a uma overdose, decide entrar para valer no programa de desintoxicação com a ajuda da assistente social, Val (Joanne Froggatt, da série de TV Downton Abbey).

Val consegue arrumar um pequeno flat em um bairro pobre para James morar. Lá conhece Betty (Ruta Gedmintas, da série The Strain: Noite Absoluta), uma jovem que ganha a vida levando cães para passear e que ama animais. Em sua primeira noite no flat, durante o banho, James ouve um barulho e pensa que um ladrão entrou na residência. Assustado, vai até a cozinha e lá descobre o responsável pelo barulho: um gato cor de laranja que estava comendo seus cereais.

James tenta em vão achar o dono do gato, repara que o animal está ferido e pede ajuda à Betty. Esta lhe dá o endereço de uma clínica veterinária que presta atendimento gratuito e chama o gato de Bob. James passa a tomar conta de Bob e a levá-lo consigo para o trabalho e o bichano chama a atenção dos passantes.

Se há uma coisa em comum entre os chamados países "de primeiro mundo" e os "emergentes" é o aumento assustador e crescente de moradores de rua, também conhecidos como "sem-tetos" ("homeless", é o termo equivalente em inglês), nestes últimos anos. 

Apesar de toda a propaganda na mídia apregoando os "benefícios" do chamado "sistema de livre iniciativa" do atual momento neoliberalista pelo qual o mundo - e o Brasil em particular - passa, a verdade é que a exclusão social está cada vez maior. Inclusive nos EUA (que os coxinhas vivem usando como exemplo para seus ideais), a Meca do neoliberalismo, nunca, nem mesmo no período da Grande Depressão Econômica (1929-1939), houve tantas pessoas vivendo nas ruas como nos dias de hoje.

Em 2015, no Festival de Karoly Vary, na República Tcheca, o ator estadunidense Richard Gere (Chicago), em uma entrevista coletiva de lançamento do filme O Encontro, no qual fez o papel de um sem-teto, contou um episódio de filmagem:

“Estava na esquina de uma rua com um chapéu na cabeça. Estava um pouco nervoso porque ninguém olhava para mim. Bebi um café e comecei a pedir dinheiro, a perguntar se as pessoas podiam me ajudar. Filmamos durante 45 minutos com uma câmera digital. Durante 45 minutos ninguém olhou para mim e ninguém tentou estabelecer contato visual. Ganhei dois dólares e meio”

Há uma frase de George, personagem de Gere no filme, que resume perfeitamente essa triste situação:

"Eu sou um sem-teto. Eu não existo!".

Um Gato de Rua Chamado Bob, também mostra essa situação, de sem-tetos de expressões tristes, pedindo dinheiro, dormindo na rua e catando comida no lixo para saciar a fome. Todos ignorados pelas pessoas que passam ou tratados como uma lesma na barba que causa incômodo tal qual na cena em que James é enxotado da frente de uma estação de metrô embora não estivesse bloqueando a entrada nem perturbando ninguém. Apenas tocava seu violão.

O cineasta canadense naturalizado britânico Roger Spottiswoode (História de Um Massacre), utilizando-se de sua larga experiência  em variados gêneros de filmes no cinema e na TV e com uma direção correta e segura, deu a Um Gato de Rua Chamado Bob, o tom de fábula moderna que, conforme escrito no início do texto, encaixa-se com perfeição na história autobiográfica do best seller homônimo no qual o filme foi baseado.

Se a direção de Spottiswoode dá o tom de fábula à película, a fotografia do canadense Peter Wunstorf (O Segredo de Brokeback Mountain), dá o clima. Londres, cidade conhecida pelo fog (neblina) e por sua aparência cinzenta (no que se assemelha a metrópole brasileira São Paulo), poucas vezes apareceu de modo tão bonito, com cores tão vivas e com um leve toque de magia quanto em Um Gato de Rua Chamado Bob, mesmo em cenas de chuva ou de dia nublado.

O compositor australiano David Hirschfelder (A Lenda dos Guardiões) é um velho colaborador de Roger Spottiswoode - é o quarto filme no qual trabalham juntos. Mas, ao que parece, desta vez não estava muito inspirado, pois a trilha sonora do filme não é daquelas memoráveis. 

Em contrapartida, as canções acústicas do cantor e músico inglês Charlie Fink - ex-membro da banda Noah and The Whale e queridinho do Indie Rock (Rock Independente) britânico - são boas, daquelas que pegam ao ouvir e agradam muita gente. A interpretação das canções por parte de Luke Treadaway, que também é músico e possui sua própria banda, é competente, no melhor estilo "trovador solitário".

Não foi apenas para ser gentil que James Bowen aprovou a escolha de Luke Treadaway para interpretá-lo em Um Gato de Rua Chamado Bob, a ponto de defini-lo como "um perfeito James" (veja aqui). Com uma sólida formação teatral (em 2013, foi escolhido como Melhor Ator no Laurence Olivier Award, um dos prêmios mais prestigiosos do teatro do Reino Unido) é, juntamente com seu irmão gêmeo Harry Treadaway (da série Penny Dreadful), considerado um dos principais nomes da nova safra de atores britânicos.

A atuação de Luke no filme é intensa, dedicada, comovente e convincente. Intérprete perfeccionista, chegou a dormir na rua para sentir-se na pele de um sem-teto ou, como disse James Bowen, "(...) passou aperto como músico tocando por uns trocados e sentiu como é ser invisível" (veja aqui). Sua performance é o trabalho de um grande ator que, se trabalhar bem a sua carreira, pode tornar-se um grande astro.

É claro que não poderíamos deixar de falar do outro "ator" principal, o Gato de Rua Bob. A princípio, ele não participaria do filme, seriam usados outros gatos como dublês (veja aqui). Mas, ao fazerem o teste, não foram aprovados, e Bob acabou por "interpretar" a si mesmo (os outros gatos foram utilizados em cenas consideradas mais arriscadas).

A decisão mostrou-se acertada. Bob mostrou desinibição diante das câmeras, "atuou" com naturalidade e não estranhou a equipe e o elenco, a ponto de subir aos ombros de Luke Treadaway do mesmo modo que faz com seu dono, James. Em seu livro, o autor brinca que, ao fazer isso, Bob fica parecendo um "papagaio de pirata".

Quando se vê - nas telas ou ao vivo e em cores - o mascote de James Bowen, dá para notar que, de fato, ele não é um gato de rua qualquer. Tem mesmo algo a mais, aquele algo que não é possível definir em palavras, mas que pode-se perceber somente ao olhar e que acabou por salvar a vida de seu "parça". Não foi a toa que a dupla tornou-se tão popular, principalmente na Grã-Bretanha. 

O fato de ser namorada de Luke Treadaway na vida real ajudou a linda e talentosa Ruta Gedmintas na interpretação de sua personagem, Betty. Assim como seu namorado, ela está convincente no seu papel. 

O restante do elenco não compromete, mas houve um desperdício de talento quanto a Joanne Froggatt, cujo papel da assistente social Val poderia ter sido melhor aproveitado. 

Penso que a questão social abordada no filme poderia ter sido mais incisiva e não somente dar ênfase ao relacionamento James-Bob, ainda que essa seja a premissa deste trabalho.

Um Gato de Rua Chamado Bob foi, de modo geral, bem recebido pela crítica e, se não foi um grande sucesso nas bilheterias, pagou-se nas mesmas e ainda pode vir a dar lucro com os lançamentos em DVD e Blue-Ray. 

Em 2017, Um Gato de Rua Chamado Bob conquistou o prêmio de Melhor Filme Britânico do National Films Awards UK superando o favorito Eu, Daniel Blake, do cineasta Ken Loach (veja aqui). E, conforme vem sendo comentado nos bastidores, pode haver uma sequência igualmente baseada no outro livro de memórias de James Bowen, O Mundo Pelos Olhos de Bob.

Embora a estreia de Um Gato de Rua Chamado Bob nos cinemas do Brasil tenha sido anunciada inicialmente para dezembro de 2016 e, posteriormente, para agosto de 2017, isso não ocorreu, ainda que eu tenha acompanhado os principais lançamentos nessas épocas. Até mesmo o lançamento em DVD, anunciado para março de 2017, não ocorreu. E olhe que eu procurei nas lojas. Somente consegui ver o filme pela internet.

Qual o motivo disso tudo? Ignoro, mas lamento, pois este é o tipo de filme que os brasileiros muito apreciam e que, estou certo, dariam um bom retorno nas salas de exibições.

Em uma de suas muitas entrevistas, James Bowen foi questionado se ter um animal de estimação pode ser a solução para a recuperação do flagelo do vício das drogas, ao que o músico e escritor respondeu:

"Deu certo comigo, mas não posso garantir que dê certo para outros".

Foi uma resposta sensata.

Um Gato de Rua Chamado Bob é, realmente, uma fábula destes tempos conturbados e incertos que vivemos agora, com a diferença de ser uma história real ao invés de fictícia. E, como toda a fábula, tem uma reflexão moral. Na verdade, são várias as reflexões.

A primeira e mais óbvia, é a história de superação por meio da determinação e força de vontade. Outra é sobre o poder da esperança e do amor incondicional e recíproco. A Boa Vontade não deve ser esquecida. 

Entretanto, de todas as reflexões morais que Um Gato de Rua Chamado Bob levanta está a que pessoas cujas vidas não foram tão favorecidas não são invisíveis. Elas existem e não devem ser desprezadas, pois todos nós estamos sujeitos a infortúnios. O que aconteceu com esses "seres invisíveis e inexistentes" pode acontecer conosco também a qualquer momento, pois ninguém é completamente imune. É uma lição de humildade e modéstia que devemos aprender.

Por fim, a inspiradora e terna fábula desse sem-teto e seu mascote prova que, se quisermos realmente nos levantar dos grandes tombos que a vida nos dá, sempre haverá uma mão amiga para nos erguer ou, então, uma pata.

FICHA TÉCNICA
  • Título Original: A Street Cat Named Bob
  • Direção: Roger Spottiswoode
  • Elenco: Luke Treadaway (James Bowen), Ruta Gedmintas (Betty), Gato de Rua Bob (ele mesmo), Joanne Froggatt (Val), Anthony Head (Jack Bowen), Beth Goddard (Hilary), Darren Evans (Baz), Caroline Goodall (Mary)
  • Roteiro: James Bowen (baseado em seu livro), Gary Jenkins, Tim John, Maria Nation
  • Música: David Hirschfelder e Charlie Fink (canções)
  • Fotografia: Peter Wunstorf
  • Duração: 103 minutos
  • Ano: 2016
  • Lançamento comercial no Brasil (somente DVD): 28/03/2017

          RESUMO DO FILME

James Bowen é um jovem músico desempregado, sem-teto, viciado em drogas, rejeitado por sua família e completamente sem perspectivas de vida. Um dia, ele encontra na rua um gato cor de laranja e sua vida nunca mais será a mesma.
 
COTAÇÃO
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Veja aqui o trailer oficial de Um Gato de Rua Chamado Bob (legendado - HD):



Publicado no LinkedIn e no AdoroCinema em 1º/03/2018.