Faleceu, em 26 de abril último, na cidade de Nova York, o diretor estadunidense Jonathan Demme, devido a um câncer de esôfago, doença da qual sofria já há algum tempo. Cineasta respeitado, conquistou, em 1991, o Oscar de Melhor Diretor com o filme O Silêncio dos Inocentes.
Robert Jonathan Demme nasceu em 22 de fevereiro de 1944, nos EUA, na pequena comunidade de Baldwin, no estado de Nova York (não confundir com a cidade), filho de um executivo de relações públicas e uma dona-de-casa. No início de sua adolescência, mudou-se com a família para Miami, onde cursou o Ensino Médio local e, depois, a Universidade da Flórida, onde estudou jornalismo. Escrevia críticas de filmes no jornal da faculdade e chamou a atenção do produtor de filmes Joseph E. Levine (Uma Ponte Longe Demais), que o contratou como redator publicitário.
Em 1971, Demme conheceu o cineasta, produtor e roteirista Roger Corman (A Queda da Casa de Usher), o rei dos filmes B, que já havia revelado talentos como Peter Bogdanovich (A Última Sessão de Cinema), Francis Ford Coppola (saga O Poderoso Chefão) e Jack Nicholson (Um Estranho no Ninho). Jonathan começou a trabalhar como roteirista para Corman, que acabou por se tornar seu mentor cinematográfico.
Seu primeiro trabalho para Corman foi nesse mesmo ano com o roteiro de Angels Hard as They Come, um filme de motoqueiros que era levemente baseado no clássico Rashomon, do cineasta japonês Akira Kurosawa (Dersu Uzala). No ano seguinte, escreveu o roteiro de The Hot Box e, em 1973, foi o autor da história do filme Black Mama, White Mama, um Blaxploitation (produções voltadas para o público negro) estrelado por Pam Grier (Jackie Brown). O filme chamou a atenção por, de forma pioneira, tratar de temas como o empoderamento das mulheres e do "Black Power" (literalmente "Poder Negro", movimento político criado pelo partido político Panteras Negras).
A estréia de Jonathan Demme na direção deu-se em 1974 com o filme Celas em Chamas, um filme do gênero "mulheres na prisão", com muita nudez, sexo e violência, bastante popular na época - principalmente entre os adolescentes. A seguir, vieram mais duas direções em outras típicas produções B de Corman: o filme de gansters Loucura da Mamãe (1975, sequência de A Mulher da Metralhadora, feito no ano anterior) e Pelos Meus Direitos (1976), estrelado por Peter Fonda (Sem Destino), que conta a história de um pequeno fazendeiro que usa táticas e métodos de guerrilha para combater latifundiários corruptos.
Os temas incomuns tratados nesses filmes B por Demme - alguns até mesmo considerados de vanguarda - fez com que, em 1977, ele tivesse a sua primeira chance em um grande estúdio de Hollywood. A Paramout Pictures chamou-o para dirigir a comédia Nas Ondas do Rádio, que conta a história de amigos que são usuários fanáticos de rádio-amador, outro tema pouco comum. O filme fracassou nas bilheterias, mas foi bem recebido pelos críticos, dentre estes, Pauline Kael, do jornal The New York Times, considerada extremamente exigente e azeda, que comparou Demme ao cineasta francês Jean Renoir (Semente do Ódio).
Em 1979, dirigiu o suspense O Abraço da Morte, no qual fez uma ponta como um passageiro de um trem. No ano seguinte, dirigiu a comédia Melvin e Howard, que conta a história de um operário sem sorte que, um dia, dá uma carona a um desconhecido que afirma ser o milionário recluso Howard Hughes. Desta vez, o sucesso de público veio com o de crítica e o filme foi premiado com os Oscars de Melhor Roteiro Original e Melhor Atriz Coadjuvante (para Mary Steenburgen, da franquia De Volta Para o Futuro), enquanto Demme conquistou o prêmio de Melhor Diretor do New York Critics Circle.
Jonathan voltou a dirigir um filme para o cinema somente em 1984, no drama romântico Armas e Amores, estrelado pelo casal - nas telas e na vida real - Goldie Hawn (Clube das Desquitadas) e Kurt Russel (Os Oito Odiados). Demme teve divergências com Hawn e Russel. Ambos queriam que fosse um filme mais leve, enquanto o diretor queria fazer um trabalho mais sério. O resultado foi um filme irregular mas, ainda assim, valeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para Christine Lahti (do seriado de TV Lista Negra).
Essa pequena frustração foi compensada com o sucesso, nesse mesmo ano, de Stop Making Sense, um inovativo documentário no qual Demme registrou o show minimalista e vibrante da banda de Rock The Talking Heads (veja aqui). O filme mostrava o entrosamento perfeito entre arte popular e de vanguarda, duas características que o diretor e a banda tinham em comum. Sucesso absoluto de público e crítica que conquistou o prêmio de Melhor Documentário do National Society of Film Critics.
Aliás, Jonathan Demme sempre foi um fanático por música, Além dos Talking Heads, dirigiu três documentários sobre o músico de Country-Rock canadense Neil Young, que muito apreciava; um sobre o astro pop estadunidense Justin Timberlake, além de vídeos clips de artistas como a banda Pós-Punk New Order e o cantor Bruce Springsteen. É claro que um filme sobre Rock 'N' Roll não podia faltar em sua filmografia: em 2015, dirigiu Rick and The Flash: De Volta Para Casa uma comédia dramática tendo Meryl Streep (A Dama de Ferro) no papel principal e com roteiro de Diablo Cody (Juno).
A década de 1980 viu ainda duas grandes comédias dirigidas por Demme sobre mulheres muito agitadas e de personalidades marcantes: o primeiro é Totalmente Selvagem (1986), na qual Melanie Griffith (A Fogueira das Vaidades) leva à loucura o yuppie Jeff Daniels (A Rosa Púrpura do Cairo) e faz Ray Liotta (Sin City 2: A Dama Fatal), o ex-marido presidiário, ficar repleto de ciúmes.O filme recebeu três indicações para o Globo de Ouro, sendo de Melhores Ator e Atriz em Musical ou Comédia para Daniels e Griffith e Melhor Ator Coadjuvante para Liotta e ganhou um status de Cult Movie.
O segundo é De Caso Com a Máfia (1988), em que um agente do FBI (Matthew Modine, de Short Cuts - Cenas da Vida) apaixona-se pela bela viúva (Michelle Pfeiffer, de Sombras da Noite) de um chefão da Máfia (Alec Baldwin, da franquia Missão Impossível), que foi assassinado por um rival (Dean Stockwell, da série Jag - Ases Invencíveis). Stockwell foi indicado o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e Michelle para o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Musical ou Comédia.
O início da década de 1990 trouxe a consagração para Jonathan Demme. Somente ele poderia dirigir um tema tão inusitado, sombrio e pesado como o canibalismo que compõe a adaptação do romance do escritor Thomas Harris, O Silêncio dos Inocentes (1991).
A princípio, a resposta do público foi modesta, mas, à medida que os comentários boca-a-boca aumentavam, progressivamente aumentavam as filas do cinema. Atualmente, são poucos os que nunca ouviram falar da historia da agente do FBI Clarice Starling (interpretada por Jodie Foster, de Taxi Driver) que vai a um manicômio pedir ajuda ao insano e canibal psiquiatra Hannibal Lecter (interpretado por Anthony Hopkins, da franquia Thor) para capturar um serial killer.
Foi nesse filme que ficou consagrada uma técnica simples muito utilizada por Demme em seus filmes, de grande impacto ensinada por Roger Corman (que faz um pequeno papel no filme como chefe do FBI): os close-ups dramáticos dos personagens olhando diretamente mente para a câmera em momentos cruciais dos filmes. Nas cenas em que Lecter analisa Clarice psicologicamente, é impossível não sentir um calafrio na espinha com o olhar ao mesmo tempo fixo, frio, e aterrador do psicopata. "Mantenha os olhos do público estimulados", dizia o mestre ao seu discípulo, que aprendeu bem a lição.
Na cerimônia do Oscar, O Silêncio dos Inocentes superou as expectativas e conquistou cinco Oscars, justamente os chamados "cinco grandes": Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Adaptado. Um feito que, até então, somente dois outros filmes alcançaram: Aconteceu Naquela Noite (1934) e Um Estranho no Ninho (1975). Não se podia desejar mais.
Alçado ao patamar do primeiro time de Hollywood, Demme usou sua recém-adquirida influência para realizar um projeto que há um bom tempo vinha acalentando: um filme sobre AIDS, homossexualismo e homofobia - novamente temas pouco comuns. O resultado foi Filadélfia, lançado em 1993. O filme contava a história de um advogado (Tom Hanks, de Forrest Gump) que foi despedido da firma onde trabalhava quando descobriram que ele era portador do vírus HIV e que contrata outro advogado (Denzel Washington, de Malcolm X) para processar a empresa.
Em um tempo no qual a AIDS era ainda tratada com sensacionalismo pela imprensa, com preconceito pelas pessoas (que viam essa doença como "peste gay") e com Hollywood seguindo essas tendências, Filadélfia foi um divisor de águas e tratou do assunto tal como deve ser: com seriedade, mas sem cair no pieguismo, e mostrando a comunidade LGBT - que, apesar de importantes conquistas sociais, ainda era vista no cinema de forma estereotipada - com a dignidade e o respeito devidos.
Filadélfia foi muito recebido por crítica e público e conquistou, entre outros prêmios, os Oscars e os Globos de Ouro de Melhor Ator para Hanks, e Melhor Canção para Streets of Philadelphia, composta e interpretada pelo cantor estadunidense Bruce Springsteen (cujo vídeo foi dirigido por Jonathan em conjunto com seu sobrinho, Ted Demme, morto prematuramente, em 2002).
A seguir, veio o filme de horror Bem-Amada (1998), estrelado por Oprah Winfrey (A Cor Púrpura) e Danny Glover (franquia Máquina Mortífera), baseado no romance de mesmo nome da escritora vencedora do Prêmio Nobel Toni Morrison, que conta a história de um ex-escravo que é assombrado por um poltergeist ao mesmo tempo em que recebe a visita da reencarnação da sua filha, a quem tinha matado para quem não se tornasse uma escrava. Mais uma vez Demme mostrava a sua preferência pelos temas incomuns. O filme foi bem recebido pela crítica, mas foi mal de bilheteria.
Em 2002, foi a vez de O Segredo de Charlie, uma refilmagem do clássico Charada (1963), estrelado por Mark Whalberg (Boogie Nights) e com participação do grande cantor francês Charles Aznavour. Se Bem-Amada foi considerado um meio-fracasso, O Segredo de Charlie foi um fiasco completo: nem público nem crítica gostaram.
Sob o Domínio do Mal, em 2004, com Denzel Washington e Meryl Streep no elenco, foi uma refilmagem do suspense de mesmo nome, de 1962, com o cantor Frank Sinatra (A Um Passo da Eternidade) e a atriz Janet Leigh (Psicose) nos papéis principais. O filme foi muito bem recebido, deu novo fôlego a Demme e uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante para Meryl Streep.
Em 2008, veio O Casamento de Rachel, que conta a história de uma dependente química (Anne Hathaway, de Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge) que sai de sua clínica de reabilitação por alguns dias para ir ao casamento de sua irmã (Rosemarie DeWitt, de La La Land) e que carrega consigo muitos conflitos pessoais e familiares, que inclui, além do uso de drogas, o alcoolismo e assassinato. E nesse cenário bizarro, ainda aparece uma mulata brasileira sambando!
Novamente, Demme apelou para métodos nada comuns: ao invés das usuais câmeras de filmar, foram usadas aparelhos portáteis semelhantes às camcorders, câmeras de vídeo muito populares na década de 1980. Com isso, as filmagens duraram apenas 33 dias e resultou no que Jonathan definiu como "O mais belo filme caseiro já feito".
A crítica aclamou o filme, que foi considerado o melhor trabalho do diretor desde O Silêncio dos Inocentes e ainda valeu a Anne Hathaway sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Atriz.
Em 2013, Demme voltou a surpreender com o filme The Master Buider. Nesta adaptação da peça Solness, o Contrutor; do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (Casa de Bonecas), foi escalado um elenco do chamado "baixo clero" de Hollywood - em fama, não em talento - em que destacam-se Wallace Shawn (de A Era do Rádio, também autor do roteiro e com uma excepcional atuação) e Julie Hagerty (franquia Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu). Outro trabalho fora do comum e bastante elogiado.
Jonathan Demme era muito envolvido em ativismo político. Entre os seus trabalhos de maior destaque estão o vídeo da canção Sun City, de 1985, dirigido em conjunto com os diretores Lol Creme e Kevin Godley, para o grupo Artists United Against Apartheid, que protestava contra o odioso regime racista que, na época, vigorava na África do Sul, e mais dois documentários: The Agronomist (2003), sobre o defensor dos direitos humanos do Haiti, Jean Dominique, e Man From Plains (2007), sobre o ex-presidente dos EUA e vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Jimmy Carter, e que conquistou os Prêmios PRESCI, EIUC e Biografilm do Festival de Veneza.
Jonathan Demme também trabalhou bastante na televisão. Dentre os trabalhos realizados para a telinha, destacam-se um episódio do seriado de TV Columbo, em 1978; entre 1980 e 1986 dirigiu três episódios do prestigioso programa humorístico Saturday Night Live. Em 2017, dirigiu um episódio da série Shots Fired, estrelado por Richard Dreyfuss (Contatos Imediatos do Terceiro Grau) e Helen Hunt (Melhor Impossível). Foi o seu último trabalho que, em uma triste coincidência, foi transmitido no dia de sua morte.
Jonathan Demme sempre teve um profundo senso de concienciosidade e comunidade, sempre tendo um profundo cuidado com que colocava e mostrava em seus filmes. Em uma entrevista concedida em 2004, disse que "Esse é um dos melhores aspectos do trabalho e também sinto que é parte da minha responsabilidade como cineasta. Você deve lembrar que o comportamento que você visualiza na tela será testemunhado por milhares ou milhões de pessoas e, em última análise, dirá alguma coisa sobre nós como espécie".
Assim era Jonathan Demme, o cineasta para quem o incomum não era algo destinado aos párias ou os desprezados pela sociedade conservadora, capitalista e neoliberal na qual vivemos atualmente, mas uma característica que todos partilhamos e que faz parte de nossa humanidade. Que ele descanse em paz.
Veja aqui o trailer de Stop Making Sense (original em inglês):
Veja aqui o trailer de O Silêncio dos Inocentes (original em inglês - HD):
Veja aqui o trailer de O Casamento de Rachel (original em inglês -HD):
Publicado no LinkedIn em 22/05/2017.
Robert Jonathan Demme nasceu em 22 de fevereiro de 1944, nos EUA, na pequena comunidade de Baldwin, no estado de Nova York (não confundir com a cidade), filho de um executivo de relações públicas e uma dona-de-casa. No início de sua adolescência, mudou-se com a família para Miami, onde cursou o Ensino Médio local e, depois, a Universidade da Flórida, onde estudou jornalismo. Escrevia críticas de filmes no jornal da faculdade e chamou a atenção do produtor de filmes Joseph E. Levine (Uma Ponte Longe Demais), que o contratou como redator publicitário.
Em 1971, Demme conheceu o cineasta, produtor e roteirista Roger Corman (A Queda da Casa de Usher), o rei dos filmes B, que já havia revelado talentos como Peter Bogdanovich (A Última Sessão de Cinema), Francis Ford Coppola (saga O Poderoso Chefão) e Jack Nicholson (Um Estranho no Ninho). Jonathan começou a trabalhar como roteirista para Corman, que acabou por se tornar seu mentor cinematográfico.
Seu primeiro trabalho para Corman foi nesse mesmo ano com o roteiro de Angels Hard as They Come, um filme de motoqueiros que era levemente baseado no clássico Rashomon, do cineasta japonês Akira Kurosawa (Dersu Uzala). No ano seguinte, escreveu o roteiro de The Hot Box e, em 1973, foi o autor da história do filme Black Mama, White Mama, um Blaxploitation (produções voltadas para o público negro) estrelado por Pam Grier (Jackie Brown). O filme chamou a atenção por, de forma pioneira, tratar de temas como o empoderamento das mulheres e do "Black Power" (literalmente "Poder Negro", movimento político criado pelo partido político Panteras Negras).
A estréia de Jonathan Demme na direção deu-se em 1974 com o filme Celas em Chamas, um filme do gênero "mulheres na prisão", com muita nudez, sexo e violência, bastante popular na época - principalmente entre os adolescentes. A seguir, vieram mais duas direções em outras típicas produções B de Corman: o filme de gansters Loucura da Mamãe (1975, sequência de A Mulher da Metralhadora, feito no ano anterior) e Pelos Meus Direitos (1976), estrelado por Peter Fonda (Sem Destino), que conta a história de um pequeno fazendeiro que usa táticas e métodos de guerrilha para combater latifundiários corruptos.
Os temas incomuns tratados nesses filmes B por Demme - alguns até mesmo considerados de vanguarda - fez com que, em 1977, ele tivesse a sua primeira chance em um grande estúdio de Hollywood. A Paramout Pictures chamou-o para dirigir a comédia Nas Ondas do Rádio, que conta a história de amigos que são usuários fanáticos de rádio-amador, outro tema pouco comum. O filme fracassou nas bilheterias, mas foi bem recebido pelos críticos, dentre estes, Pauline Kael, do jornal The New York Times, considerada extremamente exigente e azeda, que comparou Demme ao cineasta francês Jean Renoir (Semente do Ódio).
Em 1979, dirigiu o suspense O Abraço da Morte, no qual fez uma ponta como um passageiro de um trem. No ano seguinte, dirigiu a comédia Melvin e Howard, que conta a história de um operário sem sorte que, um dia, dá uma carona a um desconhecido que afirma ser o milionário recluso Howard Hughes. Desta vez, o sucesso de público veio com o de crítica e o filme foi premiado com os Oscars de Melhor Roteiro Original e Melhor Atriz Coadjuvante (para Mary Steenburgen, da franquia De Volta Para o Futuro), enquanto Demme conquistou o prêmio de Melhor Diretor do New York Critics Circle.
Jonathan voltou a dirigir um filme para o cinema somente em 1984, no drama romântico Armas e Amores, estrelado pelo casal - nas telas e na vida real - Goldie Hawn (Clube das Desquitadas) e Kurt Russel (Os Oito Odiados). Demme teve divergências com Hawn e Russel. Ambos queriam que fosse um filme mais leve, enquanto o diretor queria fazer um trabalho mais sério. O resultado foi um filme irregular mas, ainda assim, valeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para Christine Lahti (do seriado de TV Lista Negra).
Essa pequena frustração foi compensada com o sucesso, nesse mesmo ano, de Stop Making Sense, um inovativo documentário no qual Demme registrou o show minimalista e vibrante da banda de Rock The Talking Heads (veja aqui). O filme mostrava o entrosamento perfeito entre arte popular e de vanguarda, duas características que o diretor e a banda tinham em comum. Sucesso absoluto de público e crítica que conquistou o prêmio de Melhor Documentário do National Society of Film Critics.
Poster do filme Filadélfia
Aliás, Jonathan Demme sempre foi um fanático por música, Além dos Talking Heads, dirigiu três documentários sobre o músico de Country-Rock canadense Neil Young, que muito apreciava; um sobre o astro pop estadunidense Justin Timberlake, além de vídeos clips de artistas como a banda Pós-Punk New Order e o cantor Bruce Springsteen. É claro que um filme sobre Rock 'N' Roll não podia faltar em sua filmografia: em 2015, dirigiu Rick and The Flash: De Volta Para Casa uma comédia dramática tendo Meryl Streep (A Dama de Ferro) no papel principal e com roteiro de Diablo Cody (Juno).
A década de 1980 viu ainda duas grandes comédias dirigidas por Demme sobre mulheres muito agitadas e de personalidades marcantes: o primeiro é Totalmente Selvagem (1986), na qual Melanie Griffith (A Fogueira das Vaidades) leva à loucura o yuppie Jeff Daniels (A Rosa Púrpura do Cairo) e faz Ray Liotta (Sin City 2: A Dama Fatal), o ex-marido presidiário, ficar repleto de ciúmes.O filme recebeu três indicações para o Globo de Ouro, sendo de Melhores Ator e Atriz em Musical ou Comédia para Daniels e Griffith e Melhor Ator Coadjuvante para Liotta e ganhou um status de Cult Movie.
O segundo é De Caso Com a Máfia (1988), em que um agente do FBI (Matthew Modine, de Short Cuts - Cenas da Vida) apaixona-se pela bela viúva (Michelle Pfeiffer, de Sombras da Noite) de um chefão da Máfia (Alec Baldwin, da franquia Missão Impossível), que foi assassinado por um rival (Dean Stockwell, da série Jag - Ases Invencíveis). Stockwell foi indicado o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e Michelle para o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Musical ou Comédia.
O início da década de 1990 trouxe a consagração para Jonathan Demme. Somente ele poderia dirigir um tema tão inusitado, sombrio e pesado como o canibalismo que compõe a adaptação do romance do escritor Thomas Harris, O Silêncio dos Inocentes (1991).
A princípio, a resposta do público foi modesta, mas, à medida que os comentários boca-a-boca aumentavam, progressivamente aumentavam as filas do cinema. Atualmente, são poucos os que nunca ouviram falar da historia da agente do FBI Clarice Starling (interpretada por Jodie Foster, de Taxi Driver) que vai a um manicômio pedir ajuda ao insano e canibal psiquiatra Hannibal Lecter (interpretado por Anthony Hopkins, da franquia Thor) para capturar um serial killer.
Foi nesse filme que ficou consagrada uma técnica simples muito utilizada por Demme em seus filmes, de grande impacto ensinada por Roger Corman (que faz um pequeno papel no filme como chefe do FBI): os close-ups dramáticos dos personagens olhando diretamente mente para a câmera em momentos cruciais dos filmes. Nas cenas em que Lecter analisa Clarice psicologicamente, é impossível não sentir um calafrio na espinha com o olhar ao mesmo tempo fixo, frio, e aterrador do psicopata. "Mantenha os olhos do público estimulados", dizia o mestre ao seu discípulo, que aprendeu bem a lição.
Na cerimônia do Oscar, O Silêncio dos Inocentes superou as expectativas e conquistou cinco Oscars, justamente os chamados "cinco grandes": Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Adaptado. Um feito que, até então, somente dois outros filmes alcançaram: Aconteceu Naquela Noite (1934) e Um Estranho no Ninho (1975). Não se podia desejar mais.
Alçado ao patamar do primeiro time de Hollywood, Demme usou sua recém-adquirida influência para realizar um projeto que há um bom tempo vinha acalentando: um filme sobre AIDS, homossexualismo e homofobia - novamente temas pouco comuns. O resultado foi Filadélfia, lançado em 1993. O filme contava a história de um advogado (Tom Hanks, de Forrest Gump) que foi despedido da firma onde trabalhava quando descobriram que ele era portador do vírus HIV e que contrata outro advogado (Denzel Washington, de Malcolm X) para processar a empresa.
Em um tempo no qual a AIDS era ainda tratada com sensacionalismo pela imprensa, com preconceito pelas pessoas (que viam essa doença como "peste gay") e com Hollywood seguindo essas tendências, Filadélfia foi um divisor de águas e tratou do assunto tal como deve ser: com seriedade, mas sem cair no pieguismo, e mostrando a comunidade LGBT - que, apesar de importantes conquistas sociais, ainda era vista no cinema de forma estereotipada - com a dignidade e o respeito devidos.
Filadélfia foi muito recebido por crítica e público e conquistou, entre outros prêmios, os Oscars e os Globos de Ouro de Melhor Ator para Hanks, e Melhor Canção para Streets of Philadelphia, composta e interpretada pelo cantor estadunidense Bruce Springsteen (cujo vídeo foi dirigido por Jonathan em conjunto com seu sobrinho, Ted Demme, morto prematuramente, em 2002).
Poster do documentário Man From Plains
A seguir, veio o filme de horror Bem-Amada (1998), estrelado por Oprah Winfrey (A Cor Púrpura) e Danny Glover (franquia Máquina Mortífera), baseado no romance de mesmo nome da escritora vencedora do Prêmio Nobel Toni Morrison, que conta a história de um ex-escravo que é assombrado por um poltergeist ao mesmo tempo em que recebe a visita da reencarnação da sua filha, a quem tinha matado para quem não se tornasse uma escrava. Mais uma vez Demme mostrava a sua preferência pelos temas incomuns. O filme foi bem recebido pela crítica, mas foi mal de bilheteria.
Em 2002, foi a vez de O Segredo de Charlie, uma refilmagem do clássico Charada (1963), estrelado por Mark Whalberg (Boogie Nights) e com participação do grande cantor francês Charles Aznavour. Se Bem-Amada foi considerado um meio-fracasso, O Segredo de Charlie foi um fiasco completo: nem público nem crítica gostaram.
Sob o Domínio do Mal, em 2004, com Denzel Washington e Meryl Streep no elenco, foi uma refilmagem do suspense de mesmo nome, de 1962, com o cantor Frank Sinatra (A Um Passo da Eternidade) e a atriz Janet Leigh (Psicose) nos papéis principais. O filme foi muito bem recebido, deu novo fôlego a Demme e uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante para Meryl Streep.
Em 2008, veio O Casamento de Rachel, que conta a história de uma dependente química (Anne Hathaway, de Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge) que sai de sua clínica de reabilitação por alguns dias para ir ao casamento de sua irmã (Rosemarie DeWitt, de La La Land) e que carrega consigo muitos conflitos pessoais e familiares, que inclui, além do uso de drogas, o alcoolismo e assassinato. E nesse cenário bizarro, ainda aparece uma mulata brasileira sambando!
Novamente, Demme apelou para métodos nada comuns: ao invés das usuais câmeras de filmar, foram usadas aparelhos portáteis semelhantes às camcorders, câmeras de vídeo muito populares na década de 1980. Com isso, as filmagens duraram apenas 33 dias e resultou no que Jonathan definiu como "O mais belo filme caseiro já feito".
A crítica aclamou o filme, que foi considerado o melhor trabalho do diretor desde O Silêncio dos Inocentes e ainda valeu a Anne Hathaway sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Atriz.
Em 2013, Demme voltou a surpreender com o filme The Master Buider. Nesta adaptação da peça Solness, o Contrutor; do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (Casa de Bonecas), foi escalado um elenco do chamado "baixo clero" de Hollywood - em fama, não em talento - em que destacam-se Wallace Shawn (de A Era do Rádio, também autor do roteiro e com uma excepcional atuação) e Julie Hagerty (franquia Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu). Outro trabalho fora do comum e bastante elogiado.
Jonathan Demme era muito envolvido em ativismo político. Entre os seus trabalhos de maior destaque estão o vídeo da canção Sun City, de 1985, dirigido em conjunto com os diretores Lol Creme e Kevin Godley, para o grupo Artists United Against Apartheid, que protestava contra o odioso regime racista que, na época, vigorava na África do Sul, e mais dois documentários: The Agronomist (2003), sobre o defensor dos direitos humanos do Haiti, Jean Dominique, e Man From Plains (2007), sobre o ex-presidente dos EUA e vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Jimmy Carter, e que conquistou os Prêmios PRESCI, EIUC e Biografilm do Festival de Veneza.
Jonathan Demme também trabalhou bastante na televisão. Dentre os trabalhos realizados para a telinha, destacam-se um episódio do seriado de TV Columbo, em 1978; entre 1980 e 1986 dirigiu três episódios do prestigioso programa humorístico Saturday Night Live. Em 2017, dirigiu um episódio da série Shots Fired, estrelado por Richard Dreyfuss (Contatos Imediatos do Terceiro Grau) e Helen Hunt (Melhor Impossível). Foi o seu último trabalho que, em uma triste coincidência, foi transmitido no dia de sua morte.
Jonathan Demme sempre teve um profundo senso de concienciosidade e comunidade, sempre tendo um profundo cuidado com que colocava e mostrava em seus filmes. Em uma entrevista concedida em 2004, disse que "Esse é um dos melhores aspectos do trabalho e também sinto que é parte da minha responsabilidade como cineasta. Você deve lembrar que o comportamento que você visualiza na tela será testemunhado por milhares ou milhões de pessoas e, em última análise, dirá alguma coisa sobre nós como espécie".
Assim era Jonathan Demme, o cineasta para quem o incomum não era algo destinado aos párias ou os desprezados pela sociedade conservadora, capitalista e neoliberal na qual vivemos atualmente, mas uma característica que todos partilhamos e que faz parte de nossa humanidade. Que ele descanse em paz.
Veja aqui o trailer de Stop Making Sense (original em inglês):
Veja aqui o trailer de O Silêncio dos Inocentes (original em inglês - HD):
Veja aqui o trailer de O Casamento de Rachel (original em inglês -HD):
Publicado no LinkedIn em 22/05/2017.
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