Atualizado em 28/07/2021
Em
pleno século XXI as pessoas tidas como estranhas ou diferentes ainda sofrem
preconceito de nossa sociedade, sendo rotuladas como idiotas, fracassadas ou
incapazes. Na época atual, na qual está havendo um triste renascimento de
ideologias fascistas e/ou de extrema-direita no mundo – notoriamente no Brasil –
esse preconceito, infelizmente, ainda está muito alto. Entretanto, sempre há
pessoas que ousam – às vezes sem se darem conta disso – desafiar esse
preconceito e aqueles que o alimentam. É o que podemos ver no filme Voando Alto.
Michael
Edwards, mais conhecido como Eddie Edwards (interpretado pelo galês Taron Egerton, de Kingsman – Serviço Secreto), desde criança (interpretado pelos
irmãos iniciantes Tom e Jack Costello) tem o sonho de tornar-se
um atleta olímpico, mesmo sendo um garoto míope, desengonçado e com problemas
em seu joelho. Eddie é sempre incentivado por sua mãe, Janette (a simpática Jo Hartley, de Vingança Redentora), mas, por outro lado, é sempre desencorajado
pelo seu pai, Terry (Keith Allen, de
Trainspotting – Sem Limites), que
prefere que o filho seja um operário da construção civil.
Tendo
tentado todos os tipos de esporte, Eddie opta pelo Downhill (em português é
chamado de descida livre), uma modalidade de esqui na neve. Porém, após uma
apresentação desastrosa diante de patrocinadores, Eddie é cortado da equipe
olímpica de esqui da Grã-Bretanha. Desolado, Eddie até pensa em desistir de ser
atleta, mas ao ver uma foto de salto de esqui, muda de ideia e de modalidade e
decide ir até a Alemanha para começar a treinar. Lá, encontra o ex-atleta da
equipe olímpica de esqui dos EUA, Bronson Peary (o australiano Hugh Jackman, de Os Miseráveis), que, agora, ganha a vida limpando pistas de esqui e
é alcoólatra.
Eddie
pede a Peary que o treine para que possa competir nos Jogos Olímpicos de
Inverno, mas o estadunidense recusa por não acreditar no potencial de Eddie. Porém,
ao ver a determinação inabalável do jovem, mesmo este tendo recebido todo tipo
de desencorajamentos e sofrido várias quedas e fraturas, Peary resolve ajudar o
desastrado esquiador inglês. Apesar da
oposição e dos obstáculos impostos pelo Comitê Olímpico Britânico, Eddie
consegue se classificar para as Olimpíadas de Inverno onde fará história – mas
de um jeito diferente dos grandes campeões olímpicos.
Os
Jogos Olímpicos de Inverno de 1988,
realizados na cidade de Calgary, Canadá, sempre serão lembrados por três coisas
que ocorreram durante a sua realização: foi a última vez que a União Soviética
(URSS), enquanto nação, competiu; a participação pioneira da equipe de bobsled
- uma espécie de trenó – da Jamaica (que foi retratada no filme Jamaica Abaixo de Zero, em 1993, e
sobre a qual há uma breve menção em Voando
Alto) e da também participação de Eddie Edwards, que ganhou o apelido de “The
Eagle” (“A Águia”) nessa competição.
Em
todos os anos – ou próximo deles - nos quais são realizados os Jogos Olímpicos,
sejam de inverno ou de verão, os cinemas são inundados com filmes sobre atletas
e suas façanhas. Em 2012, ano dos últimos Jogos Olímpicos de verão, realizados
em Londres, foi lançado o filme britânico Fast
Girls, um filme sobre atletismo que tinha à frente de seu elenco as
inglesas Lenora Crichlow (série Being Human) e Lily James (Orgulho e
Preconceito e Zumbis). Em 1981, outro filme da Grã-Bretanha, Carruagens de Fogo, que contava a
história da equipe britânica de atletismo dos Jogos Olímpicos de 1924,
conquistou quatro Oscars – inclusive o de Melhor Filme – e a música-tema
composta pelo grego Vangelis ficou tão famosa que acabou por se tornar um hino
extra-oficial de todas as competições olímpicas desde então.
Estes
são apenas alguns exemplos, há vários outros. Mas, de um modo geral, eles
transmitem as (manjadas) mensagens do tipo “nunca desista”, “vá atrás de seu
sonho”, “dedique-se e vencerá”. Na maioria desse tipo de filme, aquele que
transmite e personifica essa mensagem, o atleta, é ao mesmo tempo um herói e
tem um aspecto igualmente heroico. Em nossa atual sociedade neoliberal (de
forte parentesco com o fascismo), essa figura do atleta-herói é extremamente
valorizada por ser sinônimo de vencedor e é uma apologia à chamada meritocracia
(conquistar algo pelo mérito), ideologia muito apreciada pelos coxinhas sejam
estes atletas ou não.
Eddie Edwards é mais parecido com um nerd, é um quatro-olhos troncudo, com uma aparência nem um pouco heroica, é o tipo de pessoa pela qual ninguém daria nada e que os coxinhas desprezam. Em outras palavras, Eddie é um anti-herói e é aí que está a grande sacada do filme.
O verdadeiro Eddie "A Águia" Edwards
Eddie Edwards é mais parecido com um nerd, é um quatro-olhos troncudo, com uma aparência nem um pouco heroica, é o tipo de pessoa pela qual ninguém daria nada e que os coxinhas desprezam. Em outras palavras, Eddie é um anti-herói e é aí que está a grande sacada do filme.
Dá
para acreditar que alguém como Eddie, um esquisitão desengonçado e atrapalhado,
possa fazer algo de relevante? O próprio
público do cinema tampouco acredita nisso ao tomar contato com ele, mas, no
decorrer do filme, este mesmo público percebe que, sim, este sujeito diferente e estranho, por quem ninguém tem a menor consideração, pode, por si
só, fazer a diferença, mesmo que de um modo heterodoxo, completamente oposto ao
modo ortodoxo do atleta-herói dos coxinhas.
O
britânico Dexter Fletcher iniciou
sua longa carreira de ator ainda na infância (sua estreia foi em Bugsy Malone – Quando As Metralhadoras Cospem,
do diretor Alan Parker, em 1976). Sua
estreia na direção deu-se em 2011 com o drama Wild Bill, que foi bem recebido pela crítica inglesa. Voando Alto é o seu terceiro filme e Fletcher
mostra que tem uma mão firme e uma direção muito segura. Fletcher consegue com
maestria associar o filme com o treinamento de Eddie: a princípio, parece que
não vai dar em nada, mas à medida que o filme avança, o progresso deste é o
progresso de Eddie, que melhora a cada momento até chegar ao seu ápice.
O
jovem ator do País de Gales, Taron
Egerton, é um astro em ascensão na Grã-Bretanha. Sua carreira é curta, mas
de sucesso: começou em 2013, na televisão (nas séries Lewis e The Smoke), e
explodiu em 2015 com o filme Kingsman:
Serviço Secreto, o sucesso-surpresa daquele ano. Sua atuação lhe valeu o
prêmio da prestigiosa revista de cinema Empire
de Melhor Ator Novo.
Em
Voando Alto, ele mostra que é, de
fato, um ator muito competente. De objeto de desejo das adolescentes em Kingsman, ele passa a objeto de repulsa
das mesmas, pois Eddie Edwards não é exatamente alguém atraente. Mas o trabalho
de Egerton vai além da aparência obtida com figurino, penteado e maquiagem: ele
pegou com perfeição todos os trejeitos e maneirismos do verdadeiro Eddie
Edwards e, apesar de toda a esquisitice do personagem, faz com que a plateia torça
loucamente por ele.
Hugh Jackman
já é há muito tempo um ator consagrado, com atuações sempre boas e
convincentes. Em Voando Alto, Hugh
tem mais uma boa performance como o alcoólatra, cínico e amargurado Bronson
Peary, inclusive com boas cenas de humor. Porém, apesar de seu bom trabalho, dá
para perceber que Hugh ainda leva neste filme muitas características de seu
personagem mais icônico, Wolverine: a barba por fazer, o gosto por uma boa
cerveja – que toma em demasia - e o (mau) hábito de fumar. Será que na vida
real Jackman fuma tanto assim?
Bronson Peary (Hugh Jackman) e Eddie Edwards (Taron Egerton)
O veterano Christopher Walken tem uma pequena, mas importante, participação em Voando Alto como Warren Sharp, o ex-técnico de Bronson Peary. Com uma aparência bem envelhecida, o personagem interpretado por Walken consegue transmitir ao público tanto a fragilidade de sua saúde física quanto da sua saúde emocional, devido à decepção tida com seu antigo pupilo.
A
fotografia de George Richmond é
muito boa, principalmente ao mostrar as lindíssimas paisagens das montanhas
nevadas da Áustria e da Alemanha, onde parte do filme foi feito. Já a música de
Matthew Margeson não tem nada demais,
embora não seja ruim. Isso é compensado pelas canções da época que são tocadas,
com destaque para Jump (saltar ou
pular, em inglês), da banda de Hard Rock estadunidense Van Halen.
Eu
só faço três restrições a Voando Alto. A
primeira é quanto às cenas de salto de esqui. Elas estão muito boas, especialmente
as que foram feitas com uma câmera no capacete, mas, estranhamente, não aparecem
tanto quanto deviam. Parece que Dexter Fletcher
ficou com medo de por mais cenas por achar que poderia exagerar. Mas, no
melhor estilo Eddie Edwards, acabou exagerando, sim, mas de modo contrário: ao
invés de ser demais, foi de menos.
A
segunda restrição é sobre o vestuário de Hugh Jackman no filme. Enquanto todos
estão com agasalhos pesados e, mesmo assim, morrendo de frio, Hugh,
frequentemente, aparece vestido apenas com uma camisa social ou, no máximo com
um agasalho leve. Tem-se a impressão que os produtores fizeram isso – mostrar a
boa forma do astro - numa tentativa de atrair mais público feminino. Por favor,
me poupem...
A
terceira restrição que faço, como os leitores de minhas críticas já devem ter
percebido, é, de novo, quanto ao horrível título nacional do filme. O título
original em inglês é “Eddie, The Eagle”, que significa, literalmente, “Eddie, a
Águia”. Porém, nossos brilhantes tradutores resolveram colocar o mesmo título
de uma comédia chinfrim de 2003 estrelada por Gwyneth Paltrow (Homem de Ferro)
e dirigida pelo brasileiro Bruno Barreto
(Crô – O Filme). Isso vai, com
certeza, causar confusão. Dá vontade de pegar esses mesmos tradutores,
colocá-los no topo de uma rampa de 90 metros e empurrá-los para baixo sem os
esquis.
Na
vida real assim como no filme, Eddie Edwards lutava contra tudo e contra todos,
mas, na maior parte das vezes, nem se tocava. Ele não ganhou nenhuma medalha
nas Olimpíadas de Calgary – aliás, ficou em último lugar nas duas categorias
nas quais competiu. Porém, pouquíssimos atletas encarnaram o ideal olímpico tão
bem como ele. Isso leva a um dos méritos de Voando Alto, que é a sua mensagem edificante: para vencer não é
necessário chegar em primeiro lugar ou conquistar uma medalha. Se acreditar em
si mesmo e fizer o seu melhor, já será uma vitória e o reconhecimento,
inevitavelmente, virá.
Voando Alto será
um candidato ao Oscar? É cedo para dizer, mas eu acho muito difícil. Embora tenha
a distribuição de grandes estúdios como a Fox e a Lionsgate, esta é uma
produção independente. Sua premiére se deu no Festival de Sundance, o maior
festival do cinema independente do mundo. E o seu primeiro prêmio foi
conquistado em outro festival independente realizado nos EUA, o Heartland Film.
Voando Alto conquistou o prêmio de
Melhor Filme baseados em fatos reais dividido com Horas Decisivas (veja a crítica aqui).
Voando Alto é daqueles filmes que
conquistam corações e mentes, tal como seu protagonista. O seu exemplo sempre
irá remeter ao já citado ideal olímpico. Para aqueles que não sabem, ele é
assim:
“O mais importante nos
Jogos Olímpicos não é vencer, mas competir. O mais importante na vida não é
conquistar, mas lutar com dignidade”.
Nesta
época em que vivemos, na qual vencer, conquistar e derrotar o “outro”
(diferente em aparência, modo, crença, pensamento), seja nos esportes, negócios
e/ou política, é tudo, este ideal olímpico está mais atual e é mais necessário
do que nunca.
P.S.:
No Brasil são poucos os que sabem, mas essas Olimpíadas de Inverno foram
registradas no documentário oficial do Comitê Olímpico Internacional (COI)
chamado Calgary’ 88 – 16 Days of Glory
(Calgary’ 88 – 16 Dias de Glória), e
que tem a direção do premiado documentarista esportivo estadunidense Bud Greenspan (Wilma). Esse documentário de mais de três horas de duração pode ser
encontrado na íntegra no site de vídeos YouTube.
FICHA TÉCNICA
RESUMO DO FILME
Veja aqui um dos saltos do verdadeiro Eddie “A Águia” Edwards durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 1988 (narração em sérvio):
- Título Original: Eddie, The Eagle
- Direção: Dexter Fletcher
- Elenco: Taron Egerton (Eddie Edwards), Hugh Jackman (Bronson Peary), Christopher Walken (Warren Sharp)
- Música: Matthew Margeson
- Fotografia: George Richmond
- Duração: 105 minutos
- Ano: 2016
RESUMO DO FILME
Baseado
na história real do inglês Eddie “A Águia” Edwards, representante da
Grã-Bretanha no salto em esquis nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1988.
COTAÇÃO
✪✪✪✪½
ESTE TEXTO É RESPEITOSAMENTE DEDICADO À MEMÓRIA DE RUBENS EWALD FILHO (1945-2019).
Veja aqui um dos saltos do verdadeiro Eddie “A Águia” Edwards durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 1988 (narração em sérvio):
Veja aqui o trailer oficial de Voando Alto (Legendado - HD):
Publicado no Observatório do Cinema e no LinkedIn, em 30/03/2016.