quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Crítica: Roda Gigante | Altos, Baixos e Decadências Giratórias


O lançamento de um novo filme de Woody Allen (Meia-Noite em Paris) é sempre um grande acontecimento tanto para críticos e cinéfilos quanto para o público em geral. Em seu novo filme, Roda Gigante, Allen retorna de Los Angeles, onde passou-se a trama de seu filme anterior, Café Society, à sua querida cidade de Nova York para tratar do assunto que conhece melhor: o relacionamento entre pessoas e, mais especificamente, entre homens e mulheres.

Na década de 1950, no balneário de Coney Island, local do conhecido parque de diversões, vivem o casal Ginny (Kate Winslet, de Titanic), que trabalha como garçonete, e Humpty (Jim Belushi, do seriado O Jim é Assim), que trabalha como operador do carrossel do parque de Coney Island, juntamente com o filho de Ginny, Richie (o ator infantil Jack Gore, de Somos o Que Somos), que tem a mania de por fogo em tudo. Ginny é uma mulher emocionalmente instável, com enxaquecas constantes, que leva uma vida muito frustrada. Um dia, aparece na lanchonete onde Ginny trabalha, a filha de Humpty, Carolina (Juno Temple, de Batman, o Cavaleiro das Trevas Ressurge), que estava ser ver o pai há mais de cinco anos por ter se casado com um gangster e agora foge do ex-marido porque sabe demais sobre seus crimes. Nesse meio-tempo, Ginny conhece Mickey Rubin (o cantor Pop Justin Timberlake, de Alpha Dog), um mestrando de teatro europeu que trabalha como salva-vidas durante as férias de verão e inicia um caso com ele. Porém, Carolina também conhece Mickey e ocorre uma atração mútua.

Assim como em A Rosa Púrpura do Cairo (1985) e A Era do Rádio (1987), Allen inspirou-se nas memórias de sua infância e juventude para criar a história de Roda Gigante. Mas, ao contrário destes filmes anteriores, quase não há humor, somente algumas risadas isoladas assemelhando-se, nesse aspecto, a um filme seu mais recente, Homem Irracional (2015 - veja a crítica aqui). Um dos poucos momentos de risos é com Richie, o filho piromaníaco de Ginny, colocando fogo em vários lugares: praia, escola, consultório médico, etc. Porém, tão logo percebe-se o que isso representa,  as risadas cessam.

A escolha do parque de diversões de Coney Island como cenário deste novo filme sério de Woody Allen, não foi casual. Inaugurado no final do século XIX, fez bastante sucesso com o público das cidades de Nova York e Nova Jérsei tendo a roda gigante como seu símbolo mais conhecido até iniciar sua decadência logo após a Segunda Guerra Mundial, com o fechamento de várias atrações e a venda dos terrenos onde estavam (um desses terrenos chegou a ser comprado pelo empreiteiro e empresário do ramo imobiliário Fred Trump, pai do atual presidente dos EUA, Donald Trump), a frequência de gente mal encarada e nada recomendável e chegou ao fundo do poço no início da década de 1980. Mickey, que é o narrador da história, por várias vezes chama a atenção dos espectadores sobre essa decadência do parque, que acaba por atingir as pessoas que trabalham e vivem no local.

O que Roda Gigante mostra com propriedade sobre essa época é que apesar de alguns anos antes terem saídos vitoriosos do conflito mundial contra as forças do Eixo, emergido como superpotência ao lado da União Soviética e estarem em um período de prosperidade material,  os EUA também passavam por uma decadência, mas esta de ordem moral, que acompanhava a de Coney Island e que estende-se até os dias de hoje com um comportamento racista, xenófobo, homofóbico e misógino e que não se importa com que os outros países digam. "América primeiro", é o slogan usado...

Tendo sido uma atriz fracassada em sua juventude - quando também teve um caso amoroso que lhe custou seu primeiro casamento - Ginny espelha essa decadência e, no fundo, sabe disso. Ela vê no jovem e romântico aspirante a teatrólogo uma chance de escapar dessa situação e da vida sem perspectivas que leva, mesmo que isso igualmente custe o seu segundo casamento e que afete alguma pessoa inocente. Se alguém pensou "ela primeiro", não é mera coincidência.

Mas, apesar dessa falta de ética pessoal, é possível identificar-se com os sentimentos de Ginny, pois quem já não se sentiu frustrado e triste por um sonho não realizado ou um amor não correspondido? Porém, o seu egoísmo reflete em seu karma, o que faz com que queira mandar tudo para o espaço e  negligencie os que estão à sua volta.

Kate Winslet tem uma performance simplesmente fantástica em Roda Gigante. A sua atuação faz com que a tradicional personagem "mulher à beira de um ataque de nervos", que aparece tanto em dramas como em comédias, tenha sua definição definitiva que nenhum filme de Pedro Almodóvar (Volver) seria capaz de mostrar. Ela consegue ser depressiva e sexy ao mesmo tempo e de um modo em que iguais e opostos se repelem e se atraem - não necessariamente nessa ordem. Esse papel valeu a Kate o prêmio de Melhor Atriz no Hollywood Film Awards, em novembro último. Não estranhem se ela receber uma indicação ao Oscar, pois seria mais do que merecida.

Não foi a primeira vez que Woody Allen quis trabalhar com Kate Winslet. Ele a queria como protagonista de seu filme Match Point (2005), mas, na ocasião, Kate declinou do convite para tratar de assuntos familiares. O filme é considerado uma das obras-primas de Allen. Imaginem se Kate tivesse aceito o convite...

Já o par romântico de Kate no filme , Justin Timberlake é o oposto. Woody Allen costuma acertar na escolha do elenco de seus filmes, mas errou desta vez ao escolher o cantor. A atuação de Justin em si não compromete, mas dá para notar que ele está nitidamente deslocado tanto como galã quanto como narrador da história e não convence como autor de teatro e intelectual. Mesmo em uma parte decisiva do filme, em que Mickey descobre um terrível ato de Ginny, ele não consegue passar os sentimentos necessários para uma cena tão dramática como essa. Usar um ator com uma forte formação teatral como Luke Treadaway (Um Gato de Rua Chamado Bob), teria resultado melhor.

Juno Temple foi uma aposta de Allen. Assim como Justin, sua atuação não compromete, mas ao contrário dele, ela está à vontade e consegue convencer como a filha sem juízo de Humpty que se arrepende do erros passados, tenta mudar de vida com a ajuda do pai e se relacionar bem com a sua nova família. Woody apostou e ganhou.

Para mim, a grande e agradável surpresa do filme foi Jim Belushi, que está ótimo no papel do bronco e balofo Humpty. O irmão do saudoso John Belushi (Os Irmãos Cara-de-Pau) faz do seu personagem alguém rude e terno, daqueles capaz de dar uma bofetada no pequeno Richie por este ter-lhe roubado cinquenta centavos para ir ao cinema e, simultaneamente, fazer os maiores sacrifícios para que Carolina estude e tenha um futuro. Assim como Juno, Jim está perfeitamente à vontade em seu papel. Conhecido mais pelas comédias, revelou-se um competente ator dramático. Eu, pessoalmente, torço para que ele ganhe uma indicação ou mesmo um prêmio em algum festival.

A direção de Woody Allen está segura como sempre, refletida na atuação de seu elenco - com exceção de Timberlake - e no clima ao alongo do filme mesclando com maestria romance, melancolia, humor (mesmo que em doses minúsculas) e drama. É um dos raros cineastas dos EUA capazes de retratarem a classe trabalhadora estadunidense em sua alma e coração, sonhos e desilusões, amores e ódios sem pieguismo nem concessões, no que é auxiliado aqui pela bela fotografia do italiano Vittorio Storaro (Apocalypse Now), com quem já havia trabalhado em Café Society e com quem já trabalha em seu próximo filme, Um Dia Chuvoso em Nova York, com previsão de lançamento em 2018.

Dizem que a vida é feita de altos e baixos como uma montanha-russa. Porém, ao se assistir Roda Gigante, vemos que, na verdade se assemelha mais a esse enorme e icônico brinquedo (que, em 2018, irá completar o seu centenário!) do parque de diversões de Coney Island, no qual os altos e baixos - assim como a decadência - estão em uma giratória constante e infinita.

Roda Gigante é um drama com toques de uma tragédia grega ou de Eugene O'Neill (citado por Mickey e Ginny ao longo do filme) que, por vezes resulta amargo e desesperançoso, mas que ainda assim consegue ter um pouco de poesia nessa amargura e desesperança - lembrando que nem toda poesia é romântica e/ ou otimista. No ano em que se completa o 40 aniversário de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, o filme que o consagrou como gênio do cinema e da comédia, Woody Allen apresenta mais uma pequena pérola em sua já longa carreira de cineasta. Se tornará um clássico? O tempo o dirá, mas são as pequenas pérolas que fazem um colar ficar grande.


FICHA TÉCNICA
  • Título Original: Wonder Wheel
  • Direção: Woody Allen
  • Elenco: Kate Winslet (Ginny), Justin Timberlake (Mickey Rubin), Juno Temple (Carolina), Jim Belushi (Humpty), Jack Gore (Richie)  
  • Fotografia: Vittorio Storaro
  • Duração: 101 minutos
  • Ano: 2017
  • Estréia no Brasil: 28/12/2017
RESUMO DO FILME
Ginny é a esposa de Humpty, um operador de carrossel no parque de diversões de Coney Island. Um dia, ela conhece o salva-vidas Mickey e se apaixona por ele. De repente, a filha há muito afastada de Humpty, Carolina, reaparece, fugindo de um gangster com quem se casou e também repara em Mickey.
COTAÇÃO
              

Veja aqui o trailer oficial de Roda Gigante (legendado - HD):

Publicado no LinkedIn, em 07/12/2017, e no Adoro Cinema, em 03/01/2018.

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